A invenção do fonógrafo

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A INVENÇÃO DO FONÓGRAFO

Imagem de um fonógrafo Victor

O fonógrafo, inventado em 1877 por Thomas Alva Edison, passou alguns anos no esquecimento, remetido para o monte dos novos inventos, todos dias criados e todos dias esquecidos. No entanto, uma pequena rivalidade entre Edison e Bell, já na segunda metade da década de 80 do século XIX, fez com que os dois começassem a introduzir melhoramentos à pequena máquina que gravava e reproduzia sons através de rolos de cera. Os melhoramentos foram tão significativos que na última década do séc. XIX começava a exploração comercial de fonógrafos e rolos de cera.

O fonógrafo e as experiências com a gravação sonora não foram, no entanto, um exclusivo daquele multifacetado inventor. Se é possível identificar quase desde sempre experiências que visavam a gravação e reprodução do som, é também certo que as experiências mais a sério se deram ao longo do século XIX.

Reza a lenda que cerca de 2000 anos antes de Cristo um imperador chinês recebera uma pequena caixa, oferta de um súbdito seu, quando o imperador abriu a caixa uma mensagem sonora saiu de lá de dentro. Mais de 3 500 anos depois, mais precisamente em 1548, O escritor francês Francois Rabelais no seu livro “Pantagruel” descreve “Palavras congeladas”. Avançamos um pouco mais no tempo e no século XVII, outro escritor francês, Hector – Savinien Cyrano mais conhecido como Cyrano de Bergerac, descreve numa das suas obras uma complicada caixa que permitia “ler com as orelhas”. No século XVIII o barão Kempelen constrói o “Turco falante”, um boneco que se movimentava e "falava".

Máquina de transcrição

Em 1806, Thomas Young, um físico inglês aventura-se no campo da gravação de som, gravando vibrações através de uma espécie de garfo metálico num cilindro em rotação (vibroscópio). Em 1857 o pintor francês Léon Scott de Martinville criou um método de gravação de som, através de um conjunto de linhas sobre uma folha de papel escurecida com fumo, era o Fonautógrafo. Estes dois inventos apesar de serem um significativo avanço, tinham ambos o mesmo defeito, eram incapazes de gravarem o som e depois reproduzi-lo. Na década de setenta observa-se uma intensificação das experiências, que iriam culminar com a invenção do fonógrafo. Em 1874, Bell construiu um aparelho macabro que incluía a orelha de um homem morto, não conseguindo, no entanto, gravar e reproduzir sons. A 18 de Abril de 1877, o cientista e poeta francês, Charles Cros, apresenta à Academia Francesa das Ciências um projecto chamado “Paleophone”, que previa, no papel, a gravação e reprodução sonora. A sua condição de poeta boémio [i] ajudou ao fracasso na angariação de fundos para a concretização do projecto.

Patente de Edison

Finalmente, em Dezembro de 1877, Edison regista a patente de um novo invento, o Fonógrafo.

O Fonógrafo funcionava do seguinte modo: o som fazia vibrar o diafragma de gravação, enquanto um cilindro coberto com papel de estanho ia girando sobre a agulha do diafragma, esta, ia fazendo cortes na folha de estanho que variavam conforme o som. Quando a gravação estava completa, a agulha de gravação era substituída por outra, que, girando novamente no cilindro reproduzia o que tinha sido anteriormente gravado. Foi com o poema “Mary had a little lamb” dito por Edison, que pela primeira vez uma máquina reproduzia sons tal e qual eles tinham sido produzidos anteriormente. Foi este o invento que tornou Edison mundialmente conhecido.

Outro fonógrafo de Edison (1912)

Em Abril de 1878 Edison cria a “Edison Speaking Phonograph Company”, com vista a explorar comercialmente o novo invento. No entanto, este primeiro fonógrafo ainda tinha grandes limitações técnicas (como por exemplo as grandes fragilidades dos primeiros cilindros que não podiam ser utilizados mais de cinco vezes) que não permitiram uma expansão no mercado. Edison mais preocupado com o desenvolvimento da sua lâmpada eléctrica colocou o Fonógrafo de lado.

Em 1875 os irmãos Bell (Graham e Chichester), apresentam um novo modelo de fonógrafo o “Grafofone”, que substituiu a folha de estanho por uma camada de cera. Esta evolução permitiu um som mais claro e perceptível e uma maior resistência dos cilindros.

Espicaçado pelos adversários, Edison lança-se no desenvolvimento do seu fonógrafo, apresentando regularmente novas versões e fundando uma nova empresa de construção de fonógrafos.

Apesar de ao longo da década de oitenta o fonógrafo ter sido presença assídua em exposições, apenas na década de noventa começou a haver uma produção mais consistente de fonógrafos e só na viragem do século começaram a aparecer mais construtores um pouco por todos os pontos do planeta.


O fonógrafo em Portugal: dos primeiros contactos a uma ténue comercialização

Em Portugal o fonógrafo depara-se com uma sociedade portuguesa, como em todas as sociedades ocidentais, com uma elite ávida de informação e de inovação. Expande-se o telégrafo, aumentam-se as tiragens da imprensa e as edições de livros, as classes altas da sociedade procuram insistentemente por nova e mais variada informação. Mas também por uma mais diversificada diversão, aumenta a frequência dos teatros, dos passeios públicos e a ida às praias. O campo musical desenvolve-se exponencialmente em toda a segunda metade do século XIX, verificável através do aumento de sociedades recreativas e academias filarmónicas, desde as classes mais altas (entre 1861 e 1890 terão entrado em Portugal cerca de 500 pianos por ano) às mais baixas (expansão da guitarra entre o estudantes de Coimbra e os fadistas de Lisboa) assiste-se a uma autêntica melomania [ii].

Outro fonógrafo de Edison (1901)

Assim, se num primeiro momento a invenção de um aparelho que gravava e reproduzia som é mais uma notícia para colocar nos jornais, transforma-se depois em contacto real com um aparelho que combinava o gosto pela inovação e pela música.

O primeiro contacto dos portugueses, mais especificamente os lisboetas, com o fonógrafo dá-se logo em 1879 [iii], entre 20 e 28 de Outubro eram apresentados no Teatro da Trindade, no intervalo dos espectáculos, exibições de Fonografia e Taumatúrgica pelo Sr. Borgeon de Viverols. Mais do que um especialista em Fonógrafos este senhor parecia ser, somente, um verdadeiro taumaturgo, “aquele que opera milagres” [iv], a fonografia deveria vir por acréscimo. No entanto, seria o Fonógrafo a causar mais sensação.

A figura de grande inventor de Edison ainda não era muito conhecida, por isso o fonógrafo era encarado como algo sobrenatural, o facto de ser apresentado por alguém que supostamente fazia milagres só acentua a definição dada na altura de objecto metade milagre, metade máquina. As demonstrações do fonógrafo eram anunciadas como “sessões de alta magia” [v]. Perante uma plateia numerosa como era a do Teatro da Trindade, as audições do fonógrafo eram provavelmente de muito má qualidade, a primeira versão tinha muitas limitações técnicas e se já era complicado ouvir o som perto do fonógrafo, mais complicado seria num teatro com dimensões consideráveis. Estas limitações tiveram eco na imprensa, acentuando mais uma vez o carácter divinatório do objecto que lhes era apresentado, “o fonógrafo que se apresentara no domingo constipado e rouco” [vi].

Nesta fase ainda muito rudimentar do fonógrafo, este era apresentado mais como uma máquina falante, do que como uma máquina cantante, as limitações assim o impunham. É bastante provável que a apresentação ao público lisboeta se limitasse a discursos, uma vez que o que era enaltecido era a clareza com que se reconhecia a voz humana

Ao longo da década de oitenta, o fonógrafo entraria na alta sociedade lisboeta através das visitas que os ilustres do reino faziam as inúmeras exposições que se realizavam, no estrangeiro. Anualmente realizavam-se um número considerável de exposições industriais e científicas, mostrando um pouco por todo o mundo ocidental todos os novos progressos da ciência e onde a electricidade e os inventos de Edison, ocupavam quase sempre um lugar de destaque. Entre as classes altas existia um número considerável de homens que se deslocava ao estrangeiro para assistir a estas exposições. O próprio rei D. Carlos, em visita à Exposição Universal de Paris em 1889, ficou fascinado com a reprodução da sua voz num dos cilindros de Edison.

Apesar de não ser de excluir a hipótese de existirem agentes comerciais a venderem fonógrafos em Portugal, é quase certo que os primeiros fonógrafos entraram em Portugal através de compras individuais efectuadas no estrangeiro. Nesta altura, através do transporte ferroviário era bem mais fácil ir a Paris do que a Bragança, e alimentar a sede de civilização era relativamente fácil para quem tivesse dinheiro, muito dinheiro. É preciso não esquecer que, logo após a sua invenção, o fonógrafo foi colocado de parte por Edison e apenas a concorrência com os irmãos Bell, já na segunda metade de oitenta, viria a aumentar a produção de fonógrafos.

Na década de noventa a presença do Fonógrafo em Portugal tornou-se mais assídua, mas principalmente chegou a camadas diferentes da sociedade, chegando também a novos locais. Se possuir um fonógrafo próprio era ainda reservado a um restrito número de homens ricos, as mostras de fonógrafo que foram acontecendo um pouco por toda a década, transformaram o fonógrafo em mais um espectáculo público, normalíssimo em cidades como Lisboa e Porto, mas uma novidade muito grande para todo o resto do país.

Uma dessas mostras ocorreu entre 1893 e 1894. Uma empresa dirigida por dois americanos, J. F. Shelton e John Morris, percorreu o país mostrando o Fonógrafo e possivelmente também vendendo alguns (especialmente em Lisboa e no Porto). Para além de Lisboa e Porto esta empresa passou por Coimbra, Viseu e Figueira da Foz, sendo bastante provável que tivesse passado por outras localidades, sobretudo no norte do País.

As mostras de fonógrafo que aconteceram no nosso país eram basicamente espectáculos públicos, em que um espectador pagava para poder ouvir uma série de cilindros de fonógrafo por uma ordem pré determinada e conduzida por um dos responsáveis da empresa. Raramente, acontecia também que o público podia escolher o que queria ouvir utilizando neste caso o fonógrafo individualmente. Este espectáculo duraria à volta de vinte e cinco minutos o tempo de se ouvirem seis cilindros. Os programas eram bastante variados e iam desde discursos do presidente dos E.U.A. até às Polkas, passando pelas bandas militares americanas. No entanto, o mais interessante dos programas era os variados números portugueses que existiam. Nos sítios onde se mostrava o fonógrafo procediam-se também a inúmeras gravações que foram muito provavelmente as primeiras gravações sonoras portuguesas a terem uma maior repercussão.

Os espaços utilizados correspondiam à quantidade e qualidade de público que ocorria. Do espaço próprio em Lisboa (Salão do Phonographo, Avenida da Liberdade nº 118, 120), no passeio público mais importante e mais concorrido da cidade, para um público totalmente familiarizado com o invento. Até a uma rua concorrida de Viseu, para um público certamente atónito com algo que não era do seu mundo e que a custo se convencia que aquilo não era coisa do diabo. Pelo meio procuravam-se espaços em teatros concorridos (Salão Nobre do Teatro do Príncipe Real no Porto), ou junto a praças centrais (Casa da Assembleia Recreativa na Praça do Comércio).

Entre Novembro de 1893 e Janeiro de 1894, a empresa abriu o “Salão do Phonógrapho”, em plena avenida da Liberdade. Perante um público conhecedor, estavam abertos entre as cinco da tarde e as onze da noite, e por 200 réis o espectador tinha acesso ao espectáculo de 25 minutos. A adesão deve ter sido quase imediata, mas quando um mês depois baixaram o preço para 100 réis (estratégia que usariam também no Porto e em Coimbra), foram obrigados a alargarem o horário da 1 da tarde às 11 da noite. O reportório português era constituído maioritariamente, por gravações feitas em alguns dos principais teatros de Lisboa, como vimos atrás, mas também já algum fado. Assim, os grandes sucessos deveriam ser a gravação de algumas coplas da opereta. “O Brasileiro Pancrácio” cantada pela actriz Izaura e pelos actores Queirós, Augusto e Alfredo de Carvalho, era o grande sucesso do momento, arrastava multidões para o teatro da Trindade e era descrito pelos jornais da época como o maior sucesso dos últimos anos.

Fonógrafo portátil)A 13 de Janeiro de 1894, a empresa chega ao Porto estabelecendo-se no salão nobre do teatro do Príncipe Real, realizando uma primeira sessão exclusivamente para a imprensa. O sucesso no Porto terá sido ainda maior que em Lisboa, já que não tão familiarizados com o fonógrafo os portuenses ocorreram em massa. Se o primeiro horário ia das quatro e meia da tarde até às dez e meia da noite, não foi sequer necessário esperar pela redução dos preços para o horário passar a ser do meio-dia às onze da noite. No que diz respeito a gravações a estratégia adoptada foi a mesma de Lisboa, gravar as operetas de maior sucesso em cena nos teatros da cidade. Assim, eram exibidas gravações de “O Burro do Senhor Alcaide”, opereta em cena no Teatro do Príncipe Real e a actriz Ângela Pinto em “O Solar dos Barrigas”, também do Teatro do Príncipe Real, entre outras.

A Coimbra o Fonógrafo chegou a 7 de Junho de 1894, permanecendo apenas uma semana, mas voltando em Outubro para ficar até Novembro. Ao contrário de Lisboa e Porto, em que o fonógrafo era rapidamente remetido para uma pequena referência na secção de espectáculos, em Coimbra o acompanhamento dado às sessões de fonógrafo foi bastante maior, publicando quase diariamente o programa do dia e exaltando “o grande inventor Edison”. Esta maior cobertura revela-nos que, ao contrário de Lisboa e Porto, o resto do país, dezassete anos após a invenção do fonógrafo, tinha um conhecimento muito reduzido do invento e em muitos casos nulo. Devido à falta de grandes teatros as únicas gravações efectuadas em Coimbra foram do fadista/estudante, Augusto Hilário, grande figura já na altura e hoje quase um mito; foi ainda gravado “O vira do Minho canção popular, cantada na serenata, pelas festas da rainha santa está perfeitamente reproduzido, agradando muitíssimo” [viii].

No final de Junho de 1894, a empresa do fonógrafo dirigiu-se para Viseu, aqui permaneceu apenas alguns dias à semelhança do que aconteceu na Figueira da Foz para onde seguiu depois. Aqui o conhecimento do invento era nulo obrigando a empresa a instalar o fonógrafo numa rua muito concorrida para assim chamar mais facilmente a atenção. A reacção da população de Viseu, coloca-nos perante as assimetrias do Portugal do final do século XIX. Numa altura que em Lisboa o fonógrafo era apenas mais um espectáculo público em Viseu acontecia o seguinte:

“Mas com que a empresa não contava por certo, era com os protestos d’um senhor padre Miguel, redactor da Revista Católica, que julgou o fonógrafo uma máquina diabólica e que levou a sua indignação ao ponto de ir ao paço episcopal pedir uma audiência ao senhor bispo de Viseu, o que lhe foi concedida.”

Para que o leitor possa avaliar da ferocidade do padre contra o Fonógrafo Edison transcrevemos da folha o que ali escreve a este respeito:

“O senhor padre Miguel Ferreira, doutor em parte incerta e redactor da Revista Católica foi na Quinta-feira, (21 de Junho) à 1 hora depois do meio-dia, ao Paço de Fontelo, solicitar do Sr. D. José uma audiência que lhe foi concedida, e na qual pediu a sua Ex.ª reverendíssima se dignasse de interpor a sua autoridade de prelado perante o facto insólito de estar em exposição n’uma das ruas mais publicas da cidade, e pelo módico preço de 200 reis por cabeça, uma máquina infernal, um aparelho apocalíptico, que sem ter cabeça, nem guella, nem língua, nem dentes, nem coisa que da figura humana desse mínima ideia, emitia distintamente as palavras, dando-lhes a inflexão correspondente à ideia que representam objecto tão notavelmente sobrenatural que até contava! Que aquilo era sem duvida obra de Satanás, pelo que cumpria à igreja fulminar o anátema e salvar a pureza da fé e a glória de Deus horrivelmente ameaçadas.

O Sr. D. José imediatamente percebeu tratar-se do fonógrafo edison, e por isso caritativamente tentou tranquilizar o seu alucinado súbdito, explicando-lhe ser o Fonógrafo uma das maravilhas da ciência; que era obra de homens, com os quais o diabo nada tinha, e que estas e outras descobertas não podiam obscurecer a gloria de Deus sempre eterno, antes a proclamavam ao vento dos séculos, porque a centelha do génio que iluminava o cérebro de Edison e de outros videntes da civilização, era um reflexo do seu divino poder.

O Sr. Padre Miguel, que entrara em Fontelo n’um estado de desvairamento um pouco inquietador, ouvindo estas palavras do seu prelado e outras sobre a necessidade dele e outras sobre a necessidade d’elle reverendo Miguel se pôr a bem com as conquistas do progresso para não fazer figura d’Urso, retirou-se, se não convencido, pelo menos um pouco mais sossegado.” [ix]

Até ao final da década os espectáculos públicos de fonógrafo sucederam-se, quase regularmente. A 20 de Dezembro de 1896 era anunciado a abertura do Salão Express no Porto (Rua do Bonjardim nº 15 [x]), em que eram exibidos inventos de Edison, procedendo-se mais uma vez à gravação de espectáculos teatrais.

Na viragem do século surgem finalmente as primeiras casas que, para além da venda de fonógrafos e dos respectivos cilindros, apresentam também catálogos de música portuguesa. É certo que existiam pelo menos três casas com catálogos portugueses originais: Sociedade Phonográfica Portuguesa (na Rua dos Fanqueiros nº 300), que para além de cilindros italianos, franceses, americanos, apresentava no seu catálogo português, fados, canções populares, bandas e opera; a Casa Santos Dinis (na Praça dos Restauradores nº 50, 52), que se apresentava como “O primeiro Atelier Phonographico do País” e que vendia “Cantos Populares, canções, cançonetas, serenatas, descantes, cantigas dos campos e das ruas, fados e hinos nacionais” com a originalidade de todas serem acompanhadas ao piano; por último, a Phonographia Portuguesa (com dois estabelecimentos na Rua de S. Paulo e na Rua do Crucifixo) de que pouco se sabe. Estas casas dedicavam-se em exclusivo à venda de fonógrafos e cilindros, fazendo a sua própria impressão e a “raspagem eléctrica e reimpressão”. O facto de estas casas se manterem no activo no mesmo período de tempo (desde o início do século até cerca de 1907), e geograficamente muito próximas, bem no centro de Lisboa, faz-nos chegar à conclusão que a venda de Fonógrafos e sobretudo de cilindros era um negócio em expansão.

A par destas casas especializadas, surgiram uma dezena de outros estabelecimentos que, não tendo como actividade principal a venda de fonógrafos dedicavam-se à sua comercialização. Assim, desde uma casa de carimbos a um estabelecimento de vinhos e licores passando pelas bicicletas e baterias eléctricas, cilindros

É apenas no início do século XX, que se pode com toda a certeza afirmar que o fonógrafo tinha entrado no quotidiano da vida lisboeta. No entanto, no momento em que o comércio de fonógrafos se tornava regular em Lisboa, e parecia começar a expandir-se, surgia, em Portugal, um novo tipo de registo fonográfico – o disco.


O desenvolvimento do disco e do gramofone

Inventado em 1888, nos Estados Unidos pelo alemão Émil Berliner, não era apenas a forma do suporte que alterava, era também um novo aparelho de leitura que era introduzido: o Gramofone. Em relação ao fonógrafo o gramofone desenvolveu-se muito mais rapidamente. O comércio transnacional de discos e gramofones começa a ser feito ainda antes do final do século quando apareceram as duas primeiras grandes editoras discográficas. Em 1897, surgiu a “The Gramofone Company of London”, na Grã Bretanha, e, em 1898, foi a vez da “Victor Company of Camden” nos EUA. Logo desde o início estas empresas caracterizam-se pela sua vertente transnacional, chegando rapidamente aos quatro cantos do globo.

As vantagens dos discos de gramofone para os cilindros de fonógrafo fizeram com que rapidamente a venda de discos suplantasse a venda de cilindros. Assim, o som dos discos tinha uma qualidade bastante superior aos cilindros. No início os discos eram prensados apenas num lado, mas quando em 1904 passaram a ser prensados em ambos os lados, passaram a poder armazenar mais do dobro do tempo dos cilindros. A fragilidade dos cilindros era bastante maior que dos discos, e a maior portabilidade dos gramofones era mais um ponto a favor; enquanto que um gramofone podia facilmente ser transportado para o campo durante um piquenique, era bastante mais arriscado fazer isso com um fonógrafo. Contudo, a maior vantagem dos discos sobre os cilindros estava na sua produção, com os discos passou a existir aquilo que se chama de master, a partir do qual se conseguiam produzir milhares de cópias; pelo contrário, um cilindro era quase uma peça única e o máximo que se conseguia fazer era colocar um conjunto de máquinas a gravar uma mesma actuação.

Disco e cilindro entraram em competição no início do século XX, a meio da década os discos já levavam enorme vantagem e no final da década a produção de cilindros era apenas residual. Em 1910, Edison fecha a sua fábrica de cilindros na Europa.

O início da comercialização de discos em Portugal

É assim que, por volta de 1903, “aterra” bem no coração lisboeta (na Rua Garrett), a Companhia Francesa do Gramophone, empresa irmã da Gramophone Company of London. Da mesma forma que Paris fornecia dramas, comédias e livros [xi], começou também a ser a primeira a trazer discos.

A entrada do disco, no ainda praticamente inexistente mercado fonográfico português, produziu efeitos quase imediatos. A grande maioria de lojas que vendia em exclusivo fonógrafos passou a vender também gramofones e discos, deixando progressivamente de vender fonógrafos e cilindros. Apesar da diferença de preços, enquanto um cilindro custava 1

200 réis um disco custava 4

000 réis, a qualidade dos últimos justificava a diferença a bolsos desafogados. Quanto às lojas que se dedicavam mais intensamente ao catálogo português, sobreviveu apenas a Sociedade Phonográphica Portuguesa, que continuou aberta até aos primeiros anos da década de dez, as restantes sobreviveram a vender discos de cantores de ópera como E. Caruso.

Os primeiros anos do disco em Portugal trariam também as primeiras guerras entre retalhistas. A Companhia Francesa do Gramofone, tinha a patente exclusiva para Portugal do gramofone e a transformação das lojas já estabelecidas em lojas de gramofones, “não oficiais”, bem como a entrada de novas editoras estrangeiras em Portugal, fez desencadear uma pequena guerra. Durante dois anos (1904 e 1905), a Companhia Francesa do Gramofone espalhou um anúncio pela imprensa da capital em que era bem clara:

“O nome Gramofone aplica-se unicamente aos instrumentos construídos pela Companhia Francesa do Gramofone. Ninguém tem direito de servir-se d’este nome para outros artigos e o público deve acautelar-se dos vendedores pouco escrupulosos que procuram neste momento enganar os compradores com imitações de instrumentos ou de discos denominando-os com consonâncias semelhantes. Atacamo-los e ataca-los-emos sempre, pois essa denominação é nossa propriedade exclusiva.

Acautelai-vos, pois, contra as imitações de nome e exigir a nossa marca de fábrica acima, assim como o nome de Gramofone sobre todos os nossos artigos.” [xii]

A querela foi resolvida, passando a Companhia Francesa a fornecer gramofones a várias lojas da capital.

A entrada do disco em Portugal ditou em poucos anos o fim do fonógrafo e dos cilindros no nosso país, não só pelos factores de qualidade acima indicados, mas também, porque Lisboa se tornou em poucos anos um surpreendente centro de gravação e venda discográfica [xiii]. Rapidamente a Companhia Francesa do Gramofone estabeleceu agentes noutros pontos do país (Artur Barbedo no Porto, Manuel António Maneiro Gomes em Braga).

No período entre 1904 e 1915 estabeleceram-se em Portugal as alemãs Odeon, Beka e Favourit e as francesas Simplex e Ideal, aparecendo também as primeiras editoras portuguesas Luzofone e Chiadofone.

Durante a primeira década do século XX, a gravação sonora tornou-se um acontecimento, senão banal, perfeitamente usual. Assim através da tabela de preços mínimos da Associação de Classe dos Músicos Portugueses de 1914, constatamos que já estavam perfeitamente regulamentadas as “Sessões de gramofone, fonógrafo, ou outra qualquer máquina reprodutora de sons”. Nas orquestras e bandas os preços variavam entre os 2

00 e o 1

00 por cada duas horas, estando perfeitamente estabelecidos e regulamentados os ensaios e as horas extraordinárias. Curiosa também a alínea que estabelece que “Nas sessões realizadas por conta de empresas ou companhias portuguesas, é concedida a redução de 40

das respectivas tabelas.” [xiv]


Conclusão

A importância do fonógrafo deve ser medida não pela qualidade do som que regista e reproduz, mas por toda a simbologia que carrega. Se o som pode ser caracterizado de pouco nítido e arcaico, a simbologia que carrega é enorme. O Fonógrafo foi um instrumento que alterou a música em variadíssimos aspectos: pela primeira vez a música executada por artistas famosos ou simplesmente por músicos de paragens distantes pôde ser transportada para a casa de cada um e ouvida no conforto do lar. Pela primeira vez os próprios músicos podiam ouvir-se como se de um comum espectador se tratassem.

Aquilo que o fonógrafo traz de novo começa por ser de ordem material, pela primeira vez era possível transportar música, mas transforma-se numa importante transformação estética. O fonógrafo inaugurou uma série de instrumentos (gramofone, leitores de vinil, discos e cd’s) que influiriam decisivamente na forma como a música passou a chegar até ao consumidor.

No entanto, cingindo-nos unicamente ao fonógrafo, este não pode deixar de ser caracterizado como um aparelho que chegou exclusivamente às classes mais ricas dos países ocidentais.

E se era assim no estrangeiro, em Portugal acontece ainda mais intensamente. Como a maior parte da introdução de novidades tecnológicas, o país acompanha, em geral, o mesmo ritmo do estrangeiro, no entanto, entenda-se por país, Lisboa e Porto. Se até ao final do século XIX, a adesão ao fonógrafo é moderada, na viragem do século, o fonógrafo em conjunto com o gramofone, trazem ao pequeno mercado fonográfico português um reboliço impressionante.

Referências bibliográficas

[i] Frequentava um círculo literário que se encontrava no Chat Noir, frequentado por um ainda jovem Debussy e que tinha como pianista residente Eric Satie
[ii] CATROGA, Fernando, CARVALHO, Paulo A. M. Archer de, Sociedade e Cultura Portuguesas II, Lisboa, Universidade Aberta, 1996, pág. 146
[iii] O Fonógrafo para além de fazer a sua estreia em Portugal muito rapidamente, também entra depressa no vocabulário citadino, em 1879 começa a publicar-se em Lisboa o jornal de critica social “O Jacaré: Phonographo do Escândalo”
[iv] Dicionário da Língua Portuguesa, Porto, Porto Editora, 6ª Edição, 1992.
[v] Diário Ilustrado, nº 2307, 22 Outubro de 1879
[vi] Diário Ilustrado, nº 2314, 29 Outubro de 1879
[vii] O próprio Edison, logo após a sua invenção enumerou as vantagens do fonógrafo, colocando a música apenas em quarto lugar atrás de vantagens como, novo suporte para cartas, livros auditivos e auxiliar na aprendizagem de dicção.
[viii] O Defensor do Povo, nº 239, Ano III, 1 de Novembro de 1894
[ix] O Defensor do Povo, nº 206, Ano II, 10 Julho de 1894
[x] Nesta mesma rua surgirá no início do século XX, o comerciante Ricardo Lemos, será um dos primeiros a vender fonógrafos no Porto, passando depois para o negócio de discos e gramofones, tornando-se um dos primeiros portugueses a representar uma marca de discos estrangeira em Portugal, a Odeon.
[xi] RAMOS, Rui, História de Portugal: A Segunda Fundação, Lisboa, Editorial Estampa, 1998, pág. 27
[xii] Ilustração Portuguesa, 1903 /1904
[xiii] VERNON, Paul, History of Portuguese Fado, Aldershot, AshGate, 1998
[xiv] Associação de Classe dos Músicos Portugueses, Regulamento Interno e Tabelas de Preços Mínimos, Lisboa, Tipografia do Comércio, Maio de 1914


Autor: Cândido Gonçalves
© 2007 - Centro de Estudos de História Contemporânea Portuguesa - ISCTE