Rádio, media pobre, mas sem complexos

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RÁDIO, 80 ANOS - Mídia pobre, mas sem complexos



Luiz Carlos Ramos (*)

No início dos anos 50, quando a televisão havia acabado de chegar ao Brasil e era ainda objecto de desejo da elite, o rádio movimentava multidões, informava, divertia, animava, vendia, despertava a criatividade.

Entre as atracções da então poderosa Rádio Nacional do Rio de Janeiro estavam dois personagens humorísticos do programa Balança, mas não cai: o Primo Pobre e o Primo Rico. O Primo Pobre, interpretado por Brandão Filho, visitava o Primo Rico, papel caracterizado por Paulo Gracindo.

No ar, pelas ondas curtas, o diálogo de humor negro, na "mansão" de Gracindo, fazia rir o país inteiro. Brandão dizia que, em sua casa, os dois filhos estavam tão famintos e magros que já pensavam em assar Ximbica, a galinha de estimação da família. O pão-duro Gracindo tentava demovê-lo do "crime" e impedia o primo maltrapilho de se sentar numa "poltrona de 2 mil dólares", para não sujar a almofada. Mas, pelo menos, exibia a sua "caridade" e entregava a Brandão duas caixas vazias de charutos cubanos, "um presente para os meninos brincarem".

Mais tarde, esse quadro do Primo Pobre e do Primo Rico chegou à televisão e Paulo Gracindo, óptimo actor, ganharia fama definitiva como Odorico Paraguaçu, da novela O Bem Amado, da TV Globo. Além dessa dupla, outras grandes atracções do rádio migraram para a TV: Manoel da Nóbrega e a sua Praça da Alegria, Chico Anysio e o seu mundo, Adoniran Barbosa e os Demônios da Garoa, o animador de auditório César de Alencar, as cantoras cariocas rainhas de auditórios Emilinha Borba e Marlene, a cantora paulista Hebe Camargo e, claro, o Repórter Esso.


Vovô telejornal


O rádio, que está a completar 80 anos de Brasil, é o "primo pobre" da família da mídia, uma família surgida apartir do jornal, um senhor quase bicentenário, mas em busca constante de renovação. Uma família valorizada pela sempre moderninha televisão, integrada também pela revista e, mais recentemente, por um bebê - a internet.

O "primo pobre", na verdade, continua um maravilhoso veículo de comunicação e tem espaço diário garantido na vida de milhões de brasileiros. Se nos anos 50, logo após a inauguração da pioneira TV Tupi, em São Paulo, houve quem anunciasse que o rádio estava condenado à extinção, agora, meio século depois, o que se vê (e se ouve) é um rádio forte. Forte, mas pobre? Sim: forte, mas pobre. Pobre, mas feliz: não vive apenas do passado glorioso.

Essa "pobreza" tem uma explicação: observando-se o bolo das verbas de publicidade no Brasil, verifica-se que as emissoras de televisão ficam com a maior parte, enquanto os jornais também levam uma fatia considerável do dinheiro. Revistas dos mais variados tipos também conseguem uma parcela substancial das verbas. Os portais e sites de internet, por sua vez, entraram na luta há pouco tempo e, como se sabe, muitos deles acabaram por quebrar a cara: não conseguiram viabilizar os seus planos ambiciosos. O dinheiro arrecadado com anúncios na web tem sido pouco em relação aos gastos dessas empresas com salários de jornalistas e outras obrigações, provocando o fecho ou o emagrecimento de inúmeros sites e portais. Com o rádio, é diferente. Trata-se de um problema crônico,agravado nos últimos anos. A fatia das emissoras de rádio AM e FM no mercado publicitário tem sido pequena há muito tempo, mas tornou-se ainda mais minúscula na viragem do milênio. Apesar disso tudo, o jornalismo ocupa espaço fundamental em algumas emissoras, principalmente em São Paulo, Rio, Brasília, Belo Horizonte, Porto Alegre, Recife, Salvador e Fortaleza.

O rádio chegou ao Brasil como uma curiosidade, uma demonstração feita no Rio de Janeiro durante a exposição comemorativa no centenário da Independência, em 7 de setembro de 1922. Só começou a sério em 1923, mas ganhou força nos anos 30. Em 1932, o locutor César Ladeira usou o microfone da Rádio Record, de São Paulo, para estimular as tropas paulistas durante a Revolução Constitucionalista. Em 1938, o pioneiro Cagliano Neto transmitiu a Copa do Mundo directamente da França, provocando vibração instantânea do público do Brasil com os gols de Leônidas da Silva. O Rio exerceu um papel importante para o crescimento do rádio, por meio das emissoras Tupi, Nacional e Mayrink Veiga. Durante a Segunda Guerra Mundial, foi lançado no Rio o Repórter Esso, um noticioso imortalizado pelo locutor Heron Domingues, mais tarde veiculado também em São Paulo. Com a inauguração da primeira emissora de televisão da América Latina, a TV Tupi de São Paulo, em 18 de setembro de 1950, o Repórter Esso chegou à tela.


Influência carioca


Foi no fim dos anos 50 que o rádio começou a dar a resposta aos que previam o seu fim com a chegada da televisão. A partir de uma conquista tecnológica, surgiram os radinhos de pilha nos quais as antigas válvulas eram substituídas por transistores, um milagre aperfeiçoado pelos japoneses. Adeus aos enormes aparelhos de rádio, que ocupavam grande parte da sala de visitas e eram usados para sintonizar emissoras em ondas curtas. Os radinhos de pilha passaram a ser comuns nos estádios de futebol: os torcedores colocavam o aparelho colado ao ouvido, sintonizando o narrador de sua preferência. 

Em São Paulo, os narradores desportivos Pedro Luís, Edson Leite e Geraldo José de Almeida eram garantia de emoção. No Rio, os melhores estilos eram de Oduvaldo Cozzi e Jorge Curi. Só nos anos 70 é que surgiram, nas duas cidades, dois narradores de fórmulas alegres que ganharam apelidos de "Garotinho": Osmar Santos, em São Paulo, e José Carlos Araújo, no Rio.

O humor continuava vivo e forte, nas duas metrópoles. O Rio tinha o programa Balança, mas não cai, que retratava um prédio onde ocorriam as mais interessantes histórias cômicas. O paulista Manoel da Nóbrega, por sua vez, criou a Praça da Alegria lançando Ronald Golias, Canarinho, Borges de Barros, além do seu filho Carlos Alberto de Nóbrega. Na Rádio Record, Oswaldo Moles produzia um programa em que uma das atracções era Adoniran Barbosa, autor de Saudosa Maloca e personagem de uma São Paulo menos agitada. Entre os comunicadores, um mito era o cearense César de Alencar, que fez sucesso no rádio do Rio e depois chegou à TV de São Paulo.

E o jornalismo? Sem dúvida, o público deve muito ao rádio, principalmente dos anos 30 até hoje. Hoje, a Avenida Corifeu de Azevedo Marque é conhecida como aquela via que une o bairro paulistano do Butantã à divisa com o município de Osasco. Corifeu foi o radialista criador do Grande Jornal Falado Tupi, um noticioso matutino que ia ao ar pela Rádio Tupi de São Paulo desde os anos 40, quando o império de Assis Chateaubriand parecia inabalável. De voz aguda, fanático defensor do municipalismo, pelo qual teria de haver mais força para os prefeitos, Corifeufazia suas notícias chegarem até bem longe. No entanto, o Rio ainda prevalecia. Numa época em que os aparelhos de TV eram caros e os meios de comunicação limitados, a influência carioca chegava aos estados do Nordeste, do Norte, do Sul e do Centro-Oeste por meio das poderosas ondas das rádios Tupi e Nacional, ambas sediadas na então Capital Federal. Isso explica o facto de, por muito tempo, cidades como Recife, Salvador e Fortaleza terem tido um grande número de torcedores de clubes cariocas de futebol como Flamengo, Botafogo e Vasco.


Recordistas de audiência


O avanço da indústria automobilística, nos anos 60 e 70, levou a outra mudança do rádio. Aumentou o número de carros, foram modernizadas as estradas. Em cada carro, um rádio. E o rádio tornou-se um grande prestador de serviço, ajudando motoristas a superar congestionamentos de trânsito ou a saber que, à tarde, cairia uma chuva. Em São Paulo, coube à Rádio Panamericana um papel fundamental: propriedade de Antônio Augusto Amaral de Carvalho, o "Tuta", filho do notável Paulo Machado de Carvalho, essa rádio deixou de lado o apelido de "emissora dos desportos" e tornou-se Jovem Pan, no início dos anos 70. O gênio dessa transformação era Fernando Vieira de Mello, que morreu em 1.º de janeiro de 2001, deixando uma infinidade de discípulos. Foi ele quem lançou o rádio de serviço em São Paulo. Pela manhã, a Pan consolidou seu radiojornal. Durante o dia, manteve a tradição decolocar o jornalismo em primeiro lugar: se houvesse uma notícia importante, a música teria de ser interrompida.

Esse estilo fez escola. A Bandeirantes, a Excelsior e a Eldorado tinham fórmulas próprias, mas logo adoptaram algo parecido com o sistema de Fernando Vieira de Mello. Nos anos 80, a Excelsior, que pertence ao Sistema Globo de Rádio, passou a denominar-se CBN, com a proposta arrojada de fazer jornalismo 24 horas por dia. Tem conseguido isso, sob a liderança de Heródoto Barbeiro, entrando em cadeia com outras CBNs do Brasil inteiro. A Pan, por sua vez, criou a Jovem Pan-SAT, cuja operação consiste em passar a sua programação para emissoras de outras cidades. A Bandeirantes, que já foi a Cadeia Verde-Amarela, tambémalcança grande parte do território nacional.

As rádios mais populares, como Globo, Record, Capital e América, vivem à base de "comunicadores" como Eli Correa, Paulo Lopes, Paulo Barbosa, Zé Bettio. Na área policial, os recordistas de audiência foram Gil Gomes e Afanasio Jazadji. Os jovens preferem as emissoras de freqüência modulada, as FMs, em que a maioria das emissoras não tem muita preocupação com o jornalismo. Nos últimos anos, porém, a CBN, a Eldorado e a Pan passaram a apresentar programas jornalísticos nas suas FMs, em cadeia com a emissora AM.


Talento e honradez


Em 19 de março de 1999, São Paulo teve outra importante conquista na área do rádio. Conquista? Não: reconquista. Naquele dia, no bairro paulistano da Freguesia do Ó, o cardeal Dom Paulo Evaristo Arns e o arcebispo Dom Cláudio Hummes inauguraram a Rádio 9 de Julho. Foi a devolução da emissora ao povo paulista. Em 1973, a 9 de Julho, de propriedade da Cúria Metropolitana, não silenciou diante da censura colocada em prática nos meios de comunicação pela ditadura e acabou por ser fechada pelos militares. Dom Paulo ficou mais de dez anos a negociar com o governo federal a devolução daconcessão até conseguir o seu objectivo, em 1996, com a ajuda do então ministro das Comunicações, Sérgio Motta.

Tendo à frente os directores Francisco Paes de Barros e monsenhor Dario Bevilacqua, a emissora passou a ter novos transmissores, comprados com dinheiro doado por fiéis católicos, e está no ar há três anos, com uma programação produzida em defesa da cidadania, em estúdios que funcionam no prédio de um antigo seminário, no alto da Freguesia do Ó, zona norte da capital paulista. Lá, uma vez por semana, alunos do 4.º ano de Jornalismo da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo apresentam ao vivo um programa jornalístico de 20 minutos. Os temas abordados pelos estudantes variam do futebol à Aids, passando por música, literatura e noticiário internacional. Num espaço histórico do rádio, os jovens trilham caminhos novos em busca de fórmulas diferentes, capazes de atrair interesse ainda maior por esse importante veículo da mídia.

Em 28 de setembro e em 5 de outubro, últimos sábados antes das eleições, o tema escolhido pelos alunos foi a política. Eles não ignoram que o Brasil está em fase de transformações. A partir dessa constatação inevitável, esses futuros profissionais idealizaram textos e comentários que refletem o ponto de vista de uma geração responsável por uma época em que o rádio marcará o seu centenário.

Dentro de 20 anos, o Brasil deverá ser outro - se possível, sem tanta miséria nas ruas. Um país com mais dignidade. E o rádio de 2022, mais uma vez longe de ver cumpridas as previsões sobre sua extinção, será ainda mais forte, amparado por novas tecnologias e pela certeza de que continuará ágil, criativo, preciso. Para isso, contará não apenas com aparelhos digitais: terá, acima de tudo, gente de talento e honradez, gente capaz de justificar a bela tradição do rádio brasileiro. Ainda primo pobre, talvez. Pobre, mas feliz.



(*) Jornalista de O Estado de S.Paulo, professor do Departamento de Jornalismo da PUC-SP