Carta a um receptor amigo

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CARTA A UM RECEPTOR AMIGO



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Excertos de uma carta a um receptor amigo:

Meu caro,
Tu és um cofre mágico de entranhas de fios e de lâmpadas; de janelas luminosas.

Falas-me tantas vezes, pela tua boca enfeitada de seda como as das mulheres do Oriente, que eu posso e devo prestar-te a homenagem de te dirigir esta carta:
A tua magia é para mim sem mistério. A ciência ensinou-me as leis físicas, pelas quais tu reproduzes os sons. Eu sei que és, apenas, como um eco. Música ou palavra, a alma que tu tens é apenas a que os homens te emprestam. A mais pequena estrela que brilha no céu dá-nos um pouco de si.

Tu, não. Tu não tens voz própria, nem mensagem tua. Limitas-te a reproduzir exactamente o que se confia às ondas invisíveis. És irresponsável.

Como sempre, estou a ouvir-te... Este ser longínquo, que fala a plenos pulmões pela tua janelinha de luz, quase está presente. Ouço-o, percebendo-lhe as mais íntimas inflexões e intenções. Talvez seja preciso rever a noção de presença. Os filósofos diziam que um ser está presente quando nos pode falar, quando se mostra, quando pode agir perante nós: Armado deste sólido bom-senso, podia-se (e talvez ainda se possa...) enviar para o manicómio os que invocam presenças ocultas, os visionários, os obcecados. Mas tu confundes os filósofos. Como é possível que näo esteja presente, . se este senhor que me fala, está aqui comigo? Grave problema psicológico!

Parece que se suprime o espaço. Uma comunicação real com os lugares mais distantes está à minha disposiçÃo, ao alcance dos meus dedos.

O que vejo é uma pequena caixa cheia de coisas incompreensiveis e sem alma... Mas, a um estalo de um dos teus botÕes, eu tenho comigo cidades e aldeias, a terra imensa, todos os homens, todos os problemas; e as fibras da tua caixa vibram, falam, cantam, mentem, gritam...

Podia falar da geografia ou da ubiquidade divina que me concedes !... Uma pequena pressÃo faz-me voar além dos horizontes. Num abrir e fechar de olhos, eu estou em toda a parte, sem sair daqui...

Os ruídos?! Sim, os ruídos, as interferências. Bom, já não me interessam as aventuras poéticas de correr o mundo, por teu intermédio. Só emissões confortáveis. O teu poder, hoje em dia, só me proporciona certezas e vantagens burguesas. Eu solicito de ti, apenas, a distracção certa, a música ou a palavra sem ruídos nem falhas. Principalmente a companhia: Escolho (quase nem escolho...) o que está mais ajeito no quadrante, o que ficou de ontem... Esforço tão íntimo, que demonstrou bem o que pode ser a liberdade da indiferença. Nada me custa cortar a palavra, dar ou retirar a existência...

Aqui, esta cantora, grita de mais?... Deixa-se ficar, mas não se ouve... O conferencista aborrece-me?... corta-se mesmo. Execuções sumárias, tão frequentes, que me espanta o facto de ainda serem, às vezes, voluptuosas...

Tu sabes que eu não gosto da promiscuidade dos prazeres comuns. Muita gente junta, palmas, empurrões, reacções colectivas. Contigo ao lado, eu tenho todos aqui, e renuncio às convenções da delicadeza e aos inconvenientes da multidão. Mais. Recolho-me ao centro de mim mesmo, para melhor compreender e sentir ! Feliz homem só! Deixo o mundo vir ter comigo, sem que o mundo me veja. Atitude contemplativa, que se tornou já um refúgio contra a agitaçäo moderna. Sou uma ilha de muros transparentes. E posso sonhar, fantasiar, ou julgar que não estou só.

A mais divertida de todas as tuas bruxarias, é a que me faz mergulhar no universo fluido do tempo. Vozes dos que já não falam; canções que já morreram; vida-morte.

Apetecia-me uvir música. Música. Uma orquestra como uma força natural, que tivesse instrumentos de cores provocantes, um piano como uma água-forte, talvez uma voz que facilitasse a fantasia... Tu dás tudo. Até isto, que eu sei...

Mas áquele senhor que grita a plenos pulmões, ainda lá está. Vou apagar... Descobri. Descobri agora mesmo que há um dever novo: perante as tuas lâmpadas apagadas, o de praticar a deliciosa virtude do silêncio. Desculpa.

Não te culpo de nada. Sei que falas a voz dos outros, que respiras o ar que já foi respirado, e que as tuas mentiras não te sujam. És como uma arma perigosa, na mão de um criminoso. É ele quem mata. Mas quantas vítimas fazes por dia? Quantos homens tens atraiçoado? Quantas vezes chamaste "vitória" ao crime, u "bem" ao mal, "honra" à desonra? Há um dever novo: näo te ouvir, sempre que falas a voz da mentira criminosa. A deliciosa virtude do silêncio... Bem, adiante.

Além do mais, tens uma missão¨ distraír, cultivar e informar. Mas a tua boca, enfeitada de seda como a das mulheres do Oriente, cultiva pouco e informa mal. Não gostarias de dar ao homem inculto um pouco de luz, ensiná-lo a ler, a ouvir música, a ver beleza? E de dizer-lhe realmente o que se passa? Não?...

A tua missão quase se resume à distracção E isso fazes, melhor ou pior. Não me posso queixar, porque tu distrais-me. Bem sei que eu só oiço conscientemente o que interessa, o que me distrai... Mais do que o quebrar do contraste entre o silêncio e o ruído, enchendo o ambiente dum fluido vivo que se sente e quase não se ouve, mais do que isso (e já é tanto) tu dás música, programas, notícias, e a ilusão de companhia, ao solitário, ao cansado, ao avô, ao pai de família... Dás, também, à dona-de-casa sem aventuras, a possibilidade de cometer em silêncio as peripécias amorosas das tuas histórias... Dás ainda, às meninas que têm namoro (ou que não têm, mas é a mesma coisa), os ensinamentos profundos das letras das tuas cançõeselucidário de futuras atitudes e sentimentos...

As tuas entranhas de fios e de lâmpadas rasgam-se num altruísmo de dádiva. Cofre mágico! Cofre de boca enfeitada de seda como as das mulheres do Oriente, eis a minha homenagem:
Obrigado! A tua irresponsabilidade inibe-te de culpas. Obrigado. A tua voz faz parte da minha casa. Vive nela. Faz parte da minha vida. Ao som da tua música, eu vi, maravilhado, uns pèzinhos pequeninos esboçarem os primeiros passos desequilibrados da sua primeira tentativa de dança. Contigo tenho passado as minhas noites de trabalho. E os meus dias. Sempre. Não te cales. Fazes-me falta. Nunca te cales. Principalmente, quando a alma que os homens te emprestam se anima de mais calor e de mais verdade; principalmente quando repetires os ecos das vozes puras, dignas da universalidade da tua boca; dessa boca capaz de mentiras e de infâmias que matam, mas que nem sequer ferem a suave seda com que, altivamente, te enfeitas, como as mulheres do Oriente...

Obrigado. E desculpa aquilo da "deliciosa virtude do silêncio". No fim de contas, não é contigo.


Teu OUVINTE