UMA VIDA AO SERVIÇO DA RÁDIO
Acometido de uma tuberculose em 1945, Mário Portugal reactivou em pleno sanatório uma paixão antiga pela electrónica. Veio a integrar os quadros da RARET, empresa de rádio-retransmissão de origem norte-americana, sediada em Benavente e dedicada à sensibilização das populações do Leste Europeu para o valor da liberdade.
A sua história é a de um permanente jogo do gato e do rato com a contra-informação soviética, dirigida pelo KGB. História de uma paixão que viveu tanto em ditadura como em democracia – e que subsiste até hoje.
“Ajudei a libertar o Leste”
“Ainda hoje, quando encontro um imigrante de Leste aqui em Benavente, a primeira coisa que lhe pergunto é: ‘Costumava ouvir a Rádio Europa Livre?’ E ele diz-me quase sempre, sobretudo se se trata de uma mulher: ‘Ouvia, e com imenso gosto!’”, conta Mário Portugal. radioamador e apaixonado da electrónica, este antigo funcionário da RARET, empresa de rádio-retransmissão instalada em 1949 no Ribatejo por uma ONG norte-americana, colaborou durante mais de 30 anos no projecto Radio Free Europe, uma emissora de ondas curtas sediada em Nova Iorque, com estúdios de realização em Munique e reemissões a partir de Portugal para oito países do Leste europeu, entre os quais a Polónia, a Hungria e a Checoslováquia. Objectivo: sensibilizar as populações sob jugo soviético para os méritos da democracia.
Patrocinada primeiro pela associação cívica Freedom Crusaders (“Cruzados da Liberdade”) e mais tarde pelo próprio Estado americano, a RARET funcionou até 1996, tornando-se obsoleta após a queda do Muro de Berlim.
Mário Portugal Bettencourt Leça Faria foi um dos seus mais diligentes e inventivos técnicos, fintando com paixão a contra-informação soviética, dirigida pelo KGB, e vindo a criar o Boletim Técnico Interno da empresa, que se publicou durante mais de uma dezena de anos.
“Sinto-me muito orgulhoso por ter contribuído para que aqueles milhões que estavam do lado de lá alcançassem a liberdade”, diz.
Foi um professor da escola primária que primeiro mostrou um aparelho de rádio a Mário Portugal. “Chamava-se Santos. Tinha um rádio com um grande caixote de baterias e, como ele já não funcionava, lembrou-se de no-lo oferecer”, conta. “O meu avô, que era médico mas muito entusiasta de outras coisas, mandou-nos desmontar todas as baterias, para as limpar e rectificar as ligações. Depois, fez os líquidos necessários e o aparelho começou logo a ‘piar’, deixando-nos ouvir milhares de estações telegráficas”.
Nascia então uma paixão pela electrónica (e pela tecnologia em geral) que acompanharia Mário Portugal para o resto da vida.
Adolescente curioso, Mário constrói primeiro uma máquina fotográfica e depois um projector de cinema de 35mm.
Mudado ainda jovem para Lisboa, trabalha nos escritórios do Arsenal do Alfeite, para sobreviver. Acometido de uma tuberculose, porém, é internado no Sanatório Central do Caramulo, onde permanece durante cinco anos – e é aí que, a pesar dos diagnósticos médicos que o davam como a caminho da morte, reactiva o seu interesse pelo som e pela imagem.
Legenda: "Essa foto representa um emissor de onda média que lá construí sozinho, sem saber patavina daquilo, mas tive-o no ar, diariamente, muitos anos e bastava-me vir à janela e pôr-me à escuta, para ouvir por montes e vales, aquilo que eu estava a tocar... Isso fascinou-me imenso!"
Primeiro torna-se radioamador (indicativo: CT1DT), montando aparelho próprio e aprendendo as técnicas com o irmão mais velho, que lhe escrevia para o Caramulo. Depois começa a projectar filmes de animação no Sanatório Infantil. E, quando mais tarde regressa a Lisboa, já não vai para o Alfeite, onde a humidade podia contribuir para que a sua saúde rapidamente voltasse a deteriorar-se.
“Um amigo radioamador falou-me então numa firma americana que estava a instalar-se no Ribatejo, onde de resto já trabalhava um colega nosso, que usava o nome CT1CW. Escrevi-lhe, mas não obtive resposta. Fiquei muito amargurado. Só que, um dia, passeando por Lisboa, vejo os cartazes da Embaixada dos EUA e decido entrar, pedindo para falar com o cônsul”, explica. “Disseram-me à porta que ele não recebia qualquer pessoa. Mas acabou por receber-me. E então eu comecei a explicar-lhe que gostava muito de electrónica, que sabia da existência recente da RARET… E ele: ‘Não diga mais nada. É trabalhar, o que você quer? Tome este cartão e vá falar a esta morada. Diga que vai da minha parte.’ E é assim que começa a minha relação com a RARET".
O que vem a seguir é um longo relato sobre a intensa, persistente e ascendente actividade da Rádio Retransmissões, SA, polvilhado de siglas referentes a frequências, potências e amplitudes geográficas. Criada sob o beneplácito de Salazar, a empresa não obtivera de São Bento, contudo, mais do que autorização para funcionar com um mero “espelho”, recebendo emissões do estrangeiro e reemitindo-as para países terceiros.
Instalada numa região com grande implantação comunista, teve de lidar primeiro com a desconfiança das populações locais e mais tarde com o cerco que lhe foi feito pela imprensa durante o PREC. Garatujas inscritas um pouco por toda a cidade de Benavente chegaram a acusar a RARET de estar ao serviço da CIA. Residentes de Benavente, Glória e outras povoações ribatejanas temiam a sua presença.
Mas o facto é que o projecto persistiu. A onda curta tem uma emissão em estilo “circunflexo” com cerca de 2000 km de alcance, os primeiros mil a subir e os restantes a descer. Portugal era, por assim dizer, o ponto de viragem no trajecto, a etapa última da vinda das ondas e a primeira do seu regresso através de outras estações dispersas pela Europa.
“O mais engraçado era quando os russos detectavam uma frequência e começavam a provocar interferências no sinal. Aí é que começava o jogo do gato e do rato. Então abríamos outra frequência e mudávamos a emissão de imediato. Eles vinham atrás de nós e nós já estávamos na primeira frequência outra vez”, conta Mário Portugal.
Sucessivamente injectada com material mais potente e sofisticado, que chegou a fazer dela a terceira mais potente emissora de rádio-frequência do mundo (logo a seguir à BBC e à informação soviética), a RARET serviu de plataforma de rádio até depois da desintegração do Bloco de Leste, resistindo ainda durante sete anos ao final da Guerra Fria e servindo na sua fase final para a monitorização das novas democracias Pós-Pacto de Varsóvia. Os conteúdos eram fundamentalmente provenientes de Munique, onde os mais diversos dissidentes de Leste se concentravam. Missas, relatos de futebol, música – havia de tudo, sempre com a ideia de a liberdade como pano de fundo.
Os funcionários da RARET não percebiam uma palavra: era tudo falado em línguas eslavas. Entretanto, porém, a empresa começou a contratar tradutores provenientes dos países receptores das emissões – e, finalmente, alguma luz começou a fazer-se nas cabeças de homens como Mário Portugal.
“Sempre falei bem com os comunistas, antes, durante e depois do 25 de Abril. Mas também sempre fui anti-comunista. E, quando hoje falo com um comunista e ele se põe a criticar os americanos, digo-lhe logo: ‘Falas muito bem, mas foste mais um daqueles que encheram os bolsos à custa da RARET, que te comprou materiais ou que te contratou mão-de-obra. Já do lado dos russos, nunca ganhaste nada. Foi só conversa”, conta. “Mas isso é agora. Antes, quando lá trabalhávamos, não podíamos falar… Em todo o caso, foi uma vida feliz”, garante o próprio.
A PAIXÃO DA AVENTURA
Máquinas fotográficas, projectores de cinema, aparelhos de diatermia, asas delta – Mário Portugal já construiu de tudo. Instalado no seu rés-do-chão em Benavente, com oficinas e escritórios onde convivem relíquias da tecnologia e acessórios informáticos de ponta, a sua vida passa-se hoje, em parte, a recordar essas experiências, combatendo com energia a solidão da viuvez. Meios: os aparelhos de radioamadorismo e a própria Internet.
Legenda: "(...) eu vivo rodeado de milhões de coisas, mas aí está só uma micro-parte, porque é tanta a tralha, que está toda espalhada por vários sítios... Assim, atrás de mim está uma bruta máquina de estúdio, agora a servir de estante cheia de papelada... e tudo numa desarrumação incrível, até com coisas pelo chão porque já nem sei onde a pôr... Na garagem, que dava para 3 carros, está o meu e por todos lados, mais tralha, só deixando uns corredores pelos lados..."
É da sua autoria, por exemplo, o blog Engenhocando (www.engenhocando.blog.com), onde se republicam alguns dos muitos artigos técnicos que assinou em jornais regionais ou boletins de associações de radioamadores.
“Eu serei, talvez, um inconformado, porque quase sempre, em toda a minha já longa vida, sempre que pergunto a alguém porque é que as coisas são assim e não de uma forma diferente ou até contrária, normalmente, chego à conclusão de que, em todas as profissões, toda a gente sabe muito pouco”, costuma dizer. E então dá asas à sua “insaciável necessidade” de encontrar por si próprio “os porquês de tudo”.
Texto: Joel Neto
Artigo original publicado no jornal "O Correio da Manhã" do dia 12 de Novembro, 2006
Fotos: Cortesia de Mário Portugal
Legendas: Adaptadas por aminharadio.com de conversas trocadas por E-mail
Revisão do texto e arranjos: aminharadio.com
Agradecimentos a: Joel Neto e Mário Portugal
Comentários
Pedro Garcia (não verificado)
Ter, 2007-03-27 23:24
Ligação permanente
Comentário
Olá.
Gostei muito de ler esta história de vida dedicada à rádio, com as suas peripécias e afins.
Também sou um apaixonado da Rádio, e a minha formação nem é em electronica, electricidade ou radioelectricidade, é em Direito, daqui o meu comentário seguinte:
Adorei, excepto o comentário ideológico-político...
Contraponho com outro:
Embora não sendo Comunista, é de lembrar que a china teve sucesso no comunismo, sendo hoje uma das maiores potencias, senão a 1ª potencia mundial.
Pergunte-se ao "anti-comunista" se ele não gostaria de não ter de pagar nada pelo sistema de saúde. A resposta será invariavelmente "SIM". Afinal, quem
não é Comunista?
73's cordiais e respeitosos...