O homem que fez da notícia um dever cívico
Carlos Chaparro
(Professor de Jornalismo na Universidade de São Paulo)
Alguns dias antes de morrer, na manifestação que acredito tenha sido o seu último depoimento para a história (entrevista concedida a Adelino Gomes, publicada na revista Pública, de 7 de Abril), ele disse que gostaria de viver, "sei lá,10 anos".
APÓS 100 anos de percursos bem palmilhados, o velho jornalista continuava a desejar o futuro – não para o contemplar ou desfrutar, mas para interferir nele: "Há muita coisa ainda por fazer". E lá listava pequenas-grandes batalhas que - ah! se lhe dessem o desejado acréscimo de 10 anos... - certamente retomaria, para concluir inacabadas acções de amante bondoso da cidade, das pessoas e da vida.
Na opção pela bondade estava a força do pensamento de Fernando Pessa, o senhor Fernando Luiz de Oliveira Pessa, que os portugueses levaram a enterrar, corpo presente e pela televisão.
NA opção pela bondade estava também a receita da própria felicidade. É o que se descobre, ao reler frases de Fernando Pessa, que os memorialistas já publicam "cumprir com a vida e com os deveres, gostar de toda a gente que anda à sua volta, ajudar os que mais precisam".
Mas a mansidão dos bondosos não deve fazer o lobo tornar-se audacioso, escreveu nove séculos atrás um certo sábio chamado Saddi, no livro a que a tradução brasileira, de Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, deu o nome de "O Jardim das Rosas".
Pois para vigiar e inibir a audácia dos lobos – lobos, sim, aqueles do poder, da prevaricação, da corrupção, das pequenas e grandes desonestidades nos dois lados dos balcões do mundo – Fernando Pessa escolheu os mirantes do jornalismo. Pelo jornalismo e seus mirantes, renunciou aos ganhos dos seguros ("o dinheiro não é coisa que me faça torcer caminho ou mudar de idéias"), negócios que chegaram a trazê-lo ao Brasil na verdura dos vinte e poucos anos, e por aqui fez "brincalhonices, na praia, com as garotas" - mulheres bonitas, e porque bonitas, sempre apreciadas, embora também nas feias enxergasse "qualquer coisa, lá dentro, de que a gente gosta". E esta, hein?
MAIS do que pelo jornalismo, a escolha de Fernando Pessa foi pela rádio. Há uma certa imprecisão nas datas. Mas pode-se calcular que teria ele pouco mais de trinta anos quando entrou no fantástico mundo da transmissão de voz pelas ondas da radiodifusão, ao conseguir tornar-se repórter na equipe de pioneiros que pôs no ar a Emissora Nacional de Radiodifusão.
Com aguda e certamente alegre percepção do futuro para o qual corria, Pessa entrou na rádio quando (cerca de 50 anos depois das experiências realizadas por HERTZ, em 1887) se abandonava definitivamente a amplificação directa da Telefonia Sem Fios, para se entrar na maravilhosa capacidade de expansão sonora da radiodifusão, pelas ondas Hertzianas. Na Europa, proliferavam, de um lado, as emissoras de radiodifusão, e de outro, os postos receptores, provavelmente mais de 10 milhões ao entrar-se na década de trinta.
Nesse mundo novo de transmissão sonora à distância, que ignorava e derrubava fronteiras, a radiodifusão passou a ser largamente utilizada como ferramenta de propaganda ideológica, principalmente pela Rússia comunista, a Alemanha nazi e a Itália fascista, fluxo que levou o salazarismo a também criar a sua Emissora Nacional, creio que em 1935, ou ao redor disso.
A dimensão livre da radiodifusão não estava, portanto, nos países e nos regimes que a utilizavam como arma de propaganda ideológica. Mas anunciava-se um pouco mais além, na Inglaterra, onde a BBC (British Broadcasting Corporation, criada em 1922), começava a delinear o paradigma do rádio-jornalismo independente. Em 1937, lá estava Fernando Pessa na BBC, ajudando a elaborar esse paradigma de informação, e a amadurecer, nele, convicções e habilidades de jornalista cívico.
Foi a sua grande escola, segundo ele próprio.
DE Londres, pelas ondas curtas da BBC, a voz e o jornalismo cívico de Fernando Pessa chegavam clandestinamente aos lares de milhares de famílias portuguesas que, submetidas ao medo da repressão salazarista, ouviam à sucapa, nas noites de luzes apagadas, as notícias que vinham de Londres, na voz de clara e no português castiço, exemplarmente correcto, daquele locutor que parecia conversar connosco.
Connosco, sim, porque também estou nessa história. No período decisivo da guerra, ali por volta de 1944, tinha eu dez anos, comecei a me interessar por aquela telefonia em torno da qual os meus pais e as minhas irmãs mais velhas se reuniam, na casa modesta de família ferroviária, para ouvir as notícias das batalhas, que a Emissora Nacional não nos dava. E a voz todas as noites ouvidas em ritual de silêncio cúmplice, era a voz dele, de Fernando Luiz de Oliveira Pessa, o cidadão raro que os portugueses enterraram.
No silêncio com que o país acompanhou, pela televisão, o funeral do jornalista já transformado em mito, boa parte das lágrimas vertidos eram do choro de velhos portugueses e velhas portuguesas lembrando aquelas noites seguidas de 1943, 44 e 45, em que procuravam fielmente, na mágica telefonia, a voz e a bondade vigilante do jornalista Fernando Pessa, já então entregue à tarefa tão simples e tão grandiosa de dar notícias, para melhorar o mundo das pessoas. Essa, a escolha que o motivou a viver 100 anos, em andanças jornalísticas e cívicas que nas últimas décadas deram imagem à voz, na televisão.
NOTICIAR para melhorar o mundo das pessoas... Bem que poderíamos seguir-lhe o exemplo. E dar-lhe, assim, por empréstimo, a década a mais que os deuses da vida lhe negaram.
E esta, hein?!