Roquette-Pinto, o homem multidão

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ROQUETTE-PINTO: O HOMEM MULTIDÃO



por RUY CASTRO

 

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Roquette-pinto

 

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O poeta e jornalista Amadeu Amaral, Secretário da Gazeta do Rio e cronista de O Estado de S. Paulo, teve vontade de rir. Fora convidado por seu amigo Edgard Roquette-Pinto para ouvir uma transmissão experimental da Rádio Sociedade do Rio de Janeiro, que este acabara de fundar.

Roquette contara-lhe maravilhas do rádio, mas preparara-o para o espectáculo que o esperava.

Como toda a gente em 1923, Amadeu Amaral ouvira falar da nova invenção. Sabia que era uma forma de transmitir sons à distância, um misto de telégrafo com telefone, mas nunca escutara uma transmissão. Na sua fantasia, deveria ser uma coisa da alta ciência, cheia de aparelhos complicados. Daí a sua surpresa ao entrar na casa de Roquette, na Rua Vila Rica, em Botafogo, e deparar-se com um cenário de circo de cavalinhos.


Uma vara de bambu, plantada no jardim, servia de antena. Dela escorriam fios de cobre, que iam até a sala e se enfiavam numa bobina de papelão, a qual devia ser o aparelho. Deste saíam uma tomada de terra, comicamente ligada à torneira da pia, e um fone comum, de telefone, para ser aplicado à orelha. Uma geringonça infantil, primitiva e precária. Amadeu Amaral achou graça. Aquilo e que era o rádio!

Amadeu Amaral esperou o pior: iria escutar grunhidos estalos e chiados, e, para não desagradar o seu anfitrião, teria de dizer a Roquette que o rádio era mesmo a oitava maravilha. Olhou resignado para a engenhoca, aplicou o fone ao ouvido – e, em vez da cacofonia que imaginava, escutou os poemas e trechos de ópera que estavam a ser irradiados a quilômetros dali, na estação da Praia Vermelha. "Tudo tão perceptível como se os sons se originassem a dois passos. "Aquela caranguejola ridícula funcionava maravilhosamente", ele escreveria entusiasmado 'nO Estado de S. Paulo.


Amadeu Amaral fez mal em duvidar. Afinal, ele conhecia Roquette-Pinto.
Em abril de 1923, quando estava a fundar a primeira emissora de rádio do Brasil, Edgard Roquette-Pinto tinha 39 anos incompletos. Era, por qualquer critério, um homem impressionante: atlético(1m78), bonito e, como dele diria Gilberto Freyre, "com algo de imperialmente brasileiro no seu porte". Havia até quem o achasse parecido com Goethe. Mas sua reputação não repousava na figura física, embora esta provocasse suspiros em admiradoras, muitas das quais alimentaram as suas paixões por ele (e algumas correspondidas).

Roquette-Pinto não era apenas amado pelos que o conheciam. Era nacionalmente admirado pelo que já fizera pela ciência brasileira. A introdução do rádio no país era, a rigor, apenas a sua segunda ou terceira façanha, e estaria longe de ser a última.


Quando se avalia hoje o monumento legado do carioca Roquette-Pinto ao Brasil, parece inacreditável que um único homem pudesse fazer tanto. Estamos desabituados a esses homens-multidão, capazes de aplicar a sua inteligência e acção a interesses tão amplos e múltiplos. Mas, no caso de Roquette, talvez não tivesse escolha. O Brasil do seu tempo era enorme, muito maior que o de hoje, e estava todo por ser feito. Com o seu dinamismo científico, filosófico e até, espiritual, Roquette-Pinto não podia esperar que surgissem outros Roquette-Pinto para o ajudár. Enquanto esses não surgissem, ele viveria de mangas arregaçadas.


A sua biografia ainda não foi escrita e quando o for, não caberá num único volume. Só através dela poder-se-á reconstituir o que o levou – desde o seu nascimento, no dia 25 de setembro de 1884, em Botafogo a preparar-se para tantas atribuições. Pode ter sido a influência do homem que, na verdade, o criou: não o seu pai, o rico advogado Menelio Pinto de Mello, mas o seu avô materno o fazendeiro João Roquette Carneiro de Mendonça, em cuja fazenda Bela Fama, perto de Juiz de Fora, o menino Edgar passou três anos. O pouco contacto com a família do pai levou-o até a alterar o seu nome de registo – Edgar Roquette Carneiro de Mendonça Pinto Vieira de Mello – para Edgard Roquette-Pinto, com um hífen de que não abria mão. Em 1905, quando se formou pela Escola de Medicina, Edgard legalizou seu novo sobrenome e depois, estendeu-o aos seus descendentes. Quanto ao pronome, chamava a si próprio de Édgar, não Edgár.

Além do avô João Roquette, que lhe pagou os estudos e lhe transmitiu o seu amor à natureza, outros dois homens foram decisivos para o destino de Roquette, O primeiro, o biólogo Francisco de Castro, que o fez desistir da idéia de se tornar oficial da Marinha e convenceu-o a navegar pelo mundo ainda mais aventuroso da medicina e da biologia. O segundo, o médico Henrique Batista, que o converteu ao Positivismo - a doutrina fundada pelo Francês Augusto Comte (1798-1857), segundo o qual a redenção do homem se daria pelo conhecimento. Mas, embora fosse prodigiosamente estudioso, havia algo em Roquette que parecia atraí-lo para fora dos gabinetes. Sua própria tese de formatura, O Exercício da Medicina Entre os Indígenas da América, já insinuava o seu rumo futuro: a antropologia.

Em setembro de 1906, Roquette partiu para o Rio Grande do Sul a fim de estudar os sambaquis – as jazidas de conchas, ossos e utensílios do homem pré-histórico que habitou o litoral da América. E daí também porque, depois de alguns anos como assistente de Henrique Batista (com cuja filha Riza casou-se em 1908) e como médico-legista no rio, Roquette deu uma volta na sua carreira: tornou-se, por concurso, professor da cadeira de antropologia e etnografia do Museu Histórico Nacional, na Quinta da Boa Vista.

Em 1911 conheceu o homem que, este sim, o marcaria para sempre: o tenente-coronel Cândido Mariano da Silva Rondon.

Mato-grossense, Rondon, nascido em 1865, já estava nas selvas do Amazonas e do Acre desde 1890, desbravando a mata, criando povoados, demarcando fronteiras, estendendo linhas telegráficas e fazendo os primeiros contactos com tribos à margem de qualquer civilização, como os parecis, os kabixis , os tapanhumas e os cajabis.

Como Roquette, Rondon também era positivista e acreditava na ciência e na fraternidade como molas para o progresso. Levava geólogos, cartógrafos e outros peritos nas suas expedições e, ao voltar de cada uma, trazia amostras de objectos paleolíticos e entregava-os ao Museu Nacional. Muitos desses objectos caíram nas mãos de Roquette, que se debruçou fascinado para os estudár. Deles resultou o seu documento Nota sobre os Índios Nhambiquaras do Brasil Central, que leu num congresso de americanistas em Londres, em 1912.

Era a primeira vez que Roquette saía do Brasil- mas, ao pôr o pé no navio para a Europa já acertava um compromisso com Rondon: iria acompanhá-lo na sua próxima expedição á Serra do Norte. A idéia de defrontar-se com brasileiros que, em plena alvorada do século XX, ainda viviam na pré- história, era muito mais excitante para ele do que qualquer congresso científico nas estranjas.

Em julho daquele mesmo ano, de volta ao Brasil, Roquette seguiu com destino a Mato Grosso, para juntar-se a Rondon. Tinha 27 anos. Os quatro meses seguintes seriam uma saga de extraordinária importância para o conhecimento do Brasil - porque, pela primeira vez, Rondon viajava com um homem à sua altura. Roquette-Pinto, sozinho, valia por uma equipe de cientistas.

Naquela expedição foi etnógrafo, sociólogo, geógrafo, arqueólogo, botânico, zoólogo, lingüista, médico, farmacêutico, legista, fotógrafo, cineasta e folclorista. Anotou toda a aparência da região – da floresta à árvore e à folha – a composição dos solos, o contorno das montanhas, o fluxo dos rios, a intensidade das quedas e a riquíssima variedade da fauna. Nas visitas às tribos já pacificadas, mediu os crânios dos índios, comparou os seus pesos e altura, analisou as suas endemias e descreveu as suas formas de produção, comércio e transporte. Registou os seus conhecimentos científicos, relações familiares, organização política, hábitos religiosos, formas lingüísticas, habilidade manual, cantos e danças. E ainda realizou a primeira dissecação de um indígena – na verdade, uma indígena – de que se tem notícia.


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