ROQUETTE-PINTO: O HOMEM MULTIDÃO
por RUY CASTRO
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Roquette não deixou um fio solto. Anotou musicalmente os cantos dos nativos e não contente, gravou-os em cilindros de cera com o fonógrafo portátil que se usava na época. Filmou tudo que pôde e fotografou ou desenhou o reto. Sem contar o que recolheu de pedras, pontas de flechas e objetos indígenas, que transportou pelos milhares de quilômetros através de rios, pântanos e picadas abertas na selva. O que sobreviveu desses fonogramas, filmes, fotos, fichas antropométricas e objectos, conservados até hoje no Museu Nacional, dá só uma vaga idéia das condições em que tudo isso foi realizado. Roquette foi um Indiana Jones da vida real, só que mais heróico – porque verdadeiro.
No monstruoso percurso pelas selvas do Mato Grosso e do Amazonas e pelas bacias dos rios Paraguai, Jurena e Gi-Paraná, a morte acompanhou cada passo de Rondon, Roquette e os seus homens. Dias e dias de caminhada podiam ser feitos sem sol visível, debaixo da espessa vegetação – e se avançassem um quilômetro por dia isso era considerado óptimo. O princípio da expedição era a pacificação dos nhambiquaras, até então arredios a qualquer contacto com o colonizador. Arredios e hostis. Os mateiros de Rondon eram flechados à distância por mãos invisíveis; outros eram capturados e devolvidos sem cabeças; e ainda outros se feriam nas armadilhas postas por eles. E havia as ameaças permanentes da selva, como os animais e as doenças - varíola, beribéri, impaludismo. Burros, cavalos e bois iam morrendo e sendo deixados para trás. os Homens eram enterrados pelo caminho e Rondon baptizava com os seus nomes os acidentes geográficos do percurso. Mas, para o sacrifício de cada homem ou montaria, a expedição garantia um pedaço de chão que se incorporava efectivamente ao Brasil.
Para Roquette-Pinto, era tudo um milagre e esse milagre chamava-se Cândido Rondon. Sendo ele próprio mameluco por parte de avós indígenas, e falando os dialectos de várias tribos, Rondon conseguia passar para os índios a sua mensagem de paz.
Em nenhuma outra época, na história da América, o choque entre o "selvagem" e o "civilizado" foi tão suave e humano. Para isso, seu famoso lema, "Morrer, se preciso for, matar, nunca", teve de ser, primeiro, entendido pelos brancos que o seguiam. Daí Roquette extraiu uma compreensão do problema do índio que, até hoje, é revolucionária: "Nosso papel social deve ser simplesmente proteger, sem procurar dirigir nem aproveitar essa gente. Não há dois caminhos a seguir. Não devemos ter a preocupação de fazê-los cidadãos do Brasil. Todos sabem que índio é índio, brasileiro é brasileiro. A nação deve ampará-los e mesmo sustentá-los, assim como aceita, sem relutância, o ônus de manutenção dos menores abandonados ou indigentes e dos enfermos".
Os nhambiquaras contactados por Rondon e Roquette viviam na Idade da Pedra em 1912. De volta ao Rio em novembro daquele ano. Roquette depositou no Museu Nacional cerca de uma tonelada e meia de
objectos que trouxe da Serra do Norte. As anotações musicais foram entregues a Villa-Lobos, que as elaborou em
composições que assinou com Roquette. No seu organismo, Roquette trouxe também o impaludismo, a cujas seqüelas
iria atribuir a doença que o acometeria na maturidade. Mas sua própria volta à cidade já era, para muitos, uma
proeza: como um homem tão urbano, de hábitos tão refinados, um elegante intelectual carioca, podia ter
sobrevivido à brutalidade da vida na selva? Uma explicação poderia ser a grande parte da infância passada na fazenda do seu avô. O mato não lhe era
estranho. Mas há uma diferença entre as bucólicas fazendas mineiras e o sertão com
os seus perigos à traição. Poder-se-ia argumentar também que, aos 27 anos, Roquette era jovem e forte, e que,
quando ainda mais novo, fora desportista: remara durante anos pelo Botafogo, no tempo em que o remo formava os
atletas mais completos do Rio. Mas não há comparação entre um domingo de regatas e atravessar alagados carregando
equipamento e com água pelo pescoço. A única explicação está na pétrea determinação de Roquette: impusera-se uma
tarefa e tinha de cumprí-la. E os que o conheceram sabem que ele só precisava disso para agir. O poeta Carlos Drummond de Andrade, que só viria a conhecê-lo muito depois, definiu-o como "um civilizado a
quem a civilização não faria falta, porque seria capaz de reconstituí-la dentro da mata, adaptando-se ao meio e
extraindo dela valores culturais, sem perda do instinto nativo, ou por um refinamento prodigioso desse mesmo
instinto". Mas Roquette fez ainda mais: de volta à cidade, reconstituiu pela palavra a cultura da selva. A grande bagagem que trouxe da expedição foram as anotações e as memórias de tudo que havia presenciado e
vivido. Com elas, Roquette passou os quatro anos seguintes escrevendo o livro que, por si só, garantiria o seu
lugar na imortalidade: Rondônia. Um monumental tratado antropológico, botânico, geológico, climático, zoológico e etnográfico de uma vasta
região do Brasil entre os rios Juruena e Madeira, compreendendo partes do Mato Grosso, Amazonas, Pará, Acré e
Guaporé. O fio condutor era, claro, a expedição de 1912. Mal publicado o livro, em 1916, tornou-se lugar-comum
dizer que Rondônia estava para a saga de Rondon como Os Sertões, de Euclides da Cunha, estava para a de Canudos.
Os dois livros revelavam um Brasil que, até então, muitos brasileiros julgavam existir apenas na imaginação dos
poetas. Para Roquette, não poderia haver elogio maior do que ser comparado a Euclides (aliás, colega de turma de
Rondon na Escola de Cadetes da Praia Vermelha, classe de 1888) – porque, para ele, Os Sertões era comparável aos
Lusíadas ou a Don Quixote. No futuro, mais precisamente em 1956, o crítico e ensaísta Álvaro Lins estabeleceria uma outra virtude de
Rondônia: a literária. Segundo ele, era pela força estilista de seu tratado científico (e não pelos fracos contos
e poemas que depois escreveria) que Roquette-Pinto fazia parte da literatura brasileira. E Gilberto Freyre, outro
exigente no seu julgamento dos colegas, nunca deixaria de elogiar, ao lado da exuberante escrita de Rondônia, a
"segura base cientifica" de Roquette – distinção que não conferia a mais ninguém daquele tempo.
no seu livro Ordem e Progresso, Gilberto menciona treze vezes a seriedade de Roquette. O qual, não importavam as
loas, sempre foi modesto ao falar de sua obra-prima: "É um instantâneo da situação social, antropológica e
etnológica dos índios da Serra do Norte, antes que principiasse o trabalho de alteração que
a nossa cultura vai processando. É prova fotográfica – um clichê cru". Mas, naturalmente, era muito mais que isso. As suas experiências com os nativos e com os homens do sertão
deram a Roquette os instrumentos para desfechar uma campanha anti-racista que atingiria em cheio o arianismo
então vigente no Brasil. Para muitos naquela época (como para alguns ainda hoje),
as nossas mazelas seriam originárias da presença dos negros, mestiços e índios na composição racial brasileira. A
tese original era do diplomata francês Joseph Arthur, conde de Gobineau (1816-1882), autor de uma teoria racial
da História e que um dia resultaria no nazismo. Uma visão "benigna" do problema, defendida pelo então
director do Museu Nacional, o antropólogo João Batista de Lacerda, apostava no "embranquecimento" do povo: em
poucas décadas, os sucessivos cruzamentos extinguiriam a raça negra no Brasil... Mas Roquette, que via o Brasil
como "um imenso laboratório de antropologia", pensava diferente: "Nenhum dos tipos da população brasileira apresenta qualquer estigma de degeneração antropológica", escreveu
ele, "Ao contrário. As características de todos eles são as melhores que se poderiam desejar. [...] O número de
indivíduos somaticamente deficientes em algumas regiões do pais é considerável. Isso, porém, não corre por conta
de qualquer factor de ordem racial; deriva de causas patológicas cuja remoção, na maioria dos casos,
depende da antropologia. É questão de política sanitária e educativa. [...] A antropologia prova que o homem no
Brasil precisa ser educado e não substituído". O alcance de Rondônia não ficaria por aí. O livro faria a glória do futuro general e marechal Rondon, embora
este também desconhecesse por completo o sentimento da vaidade. Um único índio que escapasse ao martírio era-lhe
mais importante que os quilos de medalhas que espetavam na sua farda. Mas a verdade é que, sem o livro de
Roquette, ninguém poderia calcular a dimensão da obra de Rondon, muito menos seguir o seu exemplo. Mesmo assim,
Roquette não se dava por satisfeito. Para que o Brasil soubesse o quanto do seu território devia a Rondon, propôs
que esse território- entre os paralelos 8 e 14 ao sul do Equador e entre os meridianos 12 e 20 a oeste do Rio de
Janeiro – se chamasse, justamente, Rondônia. A idéia, lançada por Roquette em 1915, numa conferência no Museu
Nacional, seria afinal
adoptada...41anos depois, em 1956, quando uma área muito menor, a do território do Guaporé, passou a chamar-se
Rondônia. Onde, por sinal, não existe até hoje uma única cidade, rua ou arraial com o nome de Roquette-Pinto. Pouco depois de Rondônia, em 1920, Roquette, de passagem, conquistou a admiração de um povo que dedicara os
seus últimos 50 anos a olhar para o Brasil com profundo ressentimento e rancor: o do Paraguai. Em 1927, no seu
discurso de posse na Academia Brasileira de Letras, ele defenderia a convicção de que fora o Brasil o responsável
pelo início da Guerra do Paraguai, contra a opinião do académico a quem sucedia na cadeira 15: o poeta Osório
Duque Estrada, patriotíssimo autor do Hino Nacional. Ao ouvir aquilo, muitos imortais ficaram inquietos dentro dos fardões. E, já prevendo que alguns ali pudessem
acusá-lo de pouco patriota, Roquette
atirou cal nos possíveis ataques: Tanta coragem e determinação tornavam Roquette-Pinto um vulto quase onipresente na cena brasileira. As pessoas
apontavam-no ao vê-lo passar nas ruas, quase sempre com um charuto entre os dedos. Quando não era o charuto, o
objecto mais presente na sua mão era um lápis de duas cores (vermelhas e azul), com que circulava ou sublinhava
qualquer texto que o interessasse. Sabia-se que falava francês, italiano espanhol, inglês, alemão, tupi e,
segundo ele próprio, "um pouco de latim e uma reles lambujem de grego". Mas podia ser tudo, menos um pernóstico:
"Gosto muito de gíria e tenho horror à gramática. Se escrevo certo, é sempre por acaso", dizia. E sabia-se também
que tocava piano, que escrevia poemas sem intenção de publicá-los, que desenhava e pintava e era capaz de montar
ou desmontar qualquer aparelho mecânico ou elétrico: "Gosto imenso de trabalhar com as mãos. As mãos é que fazem
o homem inteligente". Numa época podre em comunicações e rica em mexericos, sabia-se também que ele e sua mulher se haviam separado.
Separações eram chocantes naquele tempo, e mais ainda entre pessoas públicas. Mas, no seu caso, não havia motivo
para mexericos. Como a sua família sempre soubera, Roquette simplesmente não era "casável". Sua inquietação não
lhe deixava muito tempo para os prazeres domésticos ou para desfrutar os dois filhos – Paulo, nascido em 1909 e
Beatriz, em 1911. E Riza, ao contrário, era uma mulher com acentuado gosto pelas coisas do lar. Como nenhum dos
dois podia mudar a sua natureza, afastaram-se de comum acordo, chorando nos braços um do outro. Anos depois, Riza
casou-se com um oficial da Marinha, ao passo que Roquette tornou-se o melhor partido do Rio de Janeiro,
disponível para as muitas mulheres que
lhe interessavam. Mas nunca voltaria a casar-se.
"Pelo progresso da minha terra, tendo arriscado contente, e mais de uma vez, a vida que ela me deu. Mas só
compreendo o patriotismo que não precisa de mentiras para manter
a sua existência".