ROQUETTE-PINTO: O HOMEM MULTIDÃO
por RUY CASTRO
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Não eram apenas as mulheres que o interessavam - tudo o interessava. Dez anos antes, a caminho de juntar-se a Rondon na selva, Roquette percebera a importância da telegrafia na integração dos grotões mais distantes. Agora, em 1922, durante as comemorações do Centenário da Independência do Brasil, ele começara a perceber a importância de uma nova e extraordinária invenção: o rádio.
Os primeiros a chegar à enorme Exposição do Centenário, instalada na esplanada aberta pelo desmonte do morro do Castelo, no centro do Rio, não deram muita importância às estranhas cornetas metálicas instaladas em alguns postes. Vistas de relance, lembravam as cornucópias dos gramofones em voga em 1922, mas poucos naquele 7 de setembro, dia da abertura da exposição, saberiam dizer para que serviam. A multidão estava mais interessada nos luxuosos pavilhões dos países participantes e, principalmente, na montanha-russa armada em frente ao novo palácio Monroe. De repente, ao cair da tarde, as pessoas ouviram assombradas, como se aqueles sons viessem das nuvens, o Hino Nacional e um discurso do presidente Epitácio Pessoa. Como, mesmo naquele tempo, ninguém acreditasse que o hino ou Epitácio tivessem nada de celestial, concluiu-se rapidamente que o som saía pelas tais cornetas. Afinal, era para aquilo que serviam as geringonças penduradas nos postes. Eram "alti-falantes" - e era o rádio que chegava.
Duas companhias americanas de energia eléctrica a Western e Westinghouse, haviam instalado pequenas estações de 500 watts no pavilhão dos Estados Unidos para demonstrar a última novidade. Os seus transmissores tinham sido montados, respectivamente, na Praia Vermelha e no alto do Corcovado (ainda sem a estátua do Cristo), com 80 alti-falantes distribuídos pela exposição e por Niterói, Petrópolis e São Paulo. À noite daquele mesmo dia, o assombro foi ainda maior quando os alti-falantes irradiaram a ópera O Guarani, de Carlos Gomes, directo do Teatro Municipal. Bem, assombro em termos. O som era fraco e rouco, como se um coro de sapos tivesse entrado pelos alti-falantes e coaxasse em uníssono fazendo passar-se por Epitácio ou por Peri e Ceci. Era preciso apurar as orelhas para se entender alguma coisa. Nos dias seguintes foram transmitidas várias palestras, inclusive uma sobre higiene, mas, àquela altura, o público já desistira de esforçar-se para ouvir.
Em janeiro de 1923, finda a exposição, a Westinghouse desmontou a estação do Corcovado e levou-a de volta para os Estados Unidos. Mas a Western conservou a sua na Praia Vermelha, na esperança de que o governo brasileiro se interessasse em comprá-la. O governo interessou-se e comprou a estação, mas entregou-a aos Correios para que ela operasse como telégrafo. Não era o que os primeiros radioamadores nacionais estavam à espera. Já havia muitos pelo país, construindo os seus próprios aparelhos e comunicando-se entre si no Rio, Paraná, São Paulo, Minas Gerais e Pernambuco. Alguns deles conseguiram autorização e começaram a usar a Praia Vermelha para transmitir boletins meteorológicos, cotações da Bolsa de Açúcar e Café, santos e efemérides do dia, cançonetas, poemas e outras pequenas atrações.
Mas era quase uma audição para surdos, porque havia um obstáculo legal a que a escuta se espalhasse: para possuir um receptor em casa, o cidadão tinha de "requerer permissão" ao Ministério da Viação através dos Correios e Telégrafos e, ainda por cima, "apresentando fiador idôneo" - um responsável pela integridade patriótica do indigitado. Com os ecos e fumaças da Grande Guerra de 1914-1918 ainda no ar, supunha-se que o rádio podia ser um instrumento perigoso, capaz de levar os segredos militares brasileiros para as potências estrangeiras – donde todo cuidado era pouco. A polícia estava autorizada a prender quem fosse apanhado a ouvir aparelhos desautorizados.
Roquette-Pinto não estava preocupado com segredos ou com militares. Aliás, a sua opinião sobre estes era arrojada para a época: era favorável ao serviço militar,mas achava que ele deveria limitar-se a "construir pontes e estradas, aprender um ofício, trabalhar numa coisa útil. [...] A Grande Guerra, aliás, veio mostrar que a vitória caberá a quem melhor se abastecer. O soldado, hoje, é principalmente um operário. As guerras são ganhas pelos eletricistas, pelos mecânicos, pelos motoristas". Para Roquette, ao contrário de guardar segredos, o rádio deveria servir para difundir a coisa de que o Brasil mais precisava: educação.
Nos Estados Unidos, a primeira emissora com transmissão regular surgira em 1920, em East Pittsburgh, na
Pensilvânia. Ou seja, outro dia mesmo, e, agora, apenas três anos depois, o rádio já passava cerca de 12 milhões
de americanos, com mais de cem estações transmitindo. Os Estados Unidos estavam sendo fantasticamente sendo
ligados pelo rádio. A Europa também, através da Marconi. Nas fantasias mais otimistas já havia operários ouvindo
Mozart, analfabetos bebendo as palavras de Bernard Shaw e gente dos mais distantes rincões sabendo as últimas de
Wall Street ou do palácio de Buckinghan, tudo pelo rádio. O rádio era uma arma, mil vezes mais poderosa do que os
canhões da Grande Guerra. Roquete começou imaginá-la integrando e educando os milhões de brasileiros dispersos
pelos mais de 8 milhões de quilômetros quadrados. Seria como completar, só que em escala nacional, a obra de
Rondon.
Era preciso fundar uma rádio e ele era o homem para isso. Uma rádio educativa, "com fins científicos e sociais",
de preferência ligada a Academia Brasileira de Ciências, da qual era secretário. O primeiro passo era pedir o
apoio do presidente desta, Henrique Morize, seu velho mestre. Morize, que era a modéstia em pessoa, assustou-se
com a idéia, mas não resistiu ao incandescente entusiasmo do discípulo. Os outros membros da academia foram logo
contagiados.
Tratava-se agora de remover os obstáculos. No dia 14 de abril, Roquette soltou pela Gazeta de Notícias a campanha para libertar o rádio da lei que dificultava que os cidadãos possuíssem aparelhos domésticos. Tinha um argumento forte: devido às transmissões da Praia Vermelha, os Correios haviam fornecido 536 licenças especiais apenas nos primeiros meses de 1923. Tal demanda era uma prova de que o Brasil inteiro queria o rádio (uma das licenças, aliás, contemplara o próprio Roquette, embora o seu aparelho fosse o que provocara risos abafados em Amadeu Amaral).
Mas só um facto consumado, como a existência de uma rádio, forçaria a queda da lei. Pois ele cuidou de que isso acontecesse: no dia 20 de abril, na sala de física da Escola Politécnica, no Largo de São Francisco, em plena reunião da academia, os cientistas comandados por Roquette fundaram a Rádio Sociedade do Rio de Janeiro – PR-1-A.
A primeira directoria já saiu constituída daquela reunião. Morize foi aclamado presidente, Roquette secretário e outros académicos ocuparam os cargos de tesoureiro e conselheiros. Os demais membros da academia assinaram eufóricos a acta de fundação e mais de trezentos sócios-efectivos e associados subscreveram-na. Para os padrões daquele tempo, era quase um acto de desobediência civil, praticado por senhores de pincenez e colarinho duro – se se aplicasse a lei, não haveria cadeia no Rio de Janeiro para todos. Mas, numa jogada hábil, Roquete indicou para presidente de honra da Rádio Sociedade o próprio ministro da Viação e Obras Públicas, Francisco Sá – de quem dependeria a revogação da lei que tornava o rádio uma actividade clandestina.
No dia 1º de maio, sob vista grossa da autoridade, a Rádio Sociedade fez a sua primeira transmissão experimental pela estação da Praia Vermelha. Ás 20h30 em ponto, Cauby de Araújo, um dos signatários, anunciou a declaração de Roquette-Pinto comunicando a fundação da rádio. Roquette tomou o microfone e, com grande optimismo e exagero, disse: "A partir de agora] todos os lares espalhados pelo imenso território do Brasil receberão livremente o conforto moral da ciência e da arte pelo milagre das ondas misteriosas que transportam, silenciosamente, no espaço, as harmonias".