Roquette-Pinto, o homem multidão - Pg4

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ROQUETTE-PINTO: O HOMEM MULTIDÃO



por RUY CASTRO

 

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Roquette-pinto

 

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Belas palavras, mas ainda levaria tempo para que o rádio atingisse todos esses lares. E ainda havia a lei "retrógrada e carrança", como ele a chamava. Mas a pressão deu resultado. No dia 11 de maio, Francisco Sá assinou a revogação: o rádio no Brasil estava finalmente livre. Já era possível ter um aparelho em casa sem ir parar no presídio da rua dos Barbonos, futuro Evaristo da Veiga. Ao governo caberia apenas licenciar o funcionamento das emissoras. Uma semana depois, no dia 19, a Rádio Sociedade promoveu a sua instalação solene, usando novamente emprestado o equipamento da Praia Vermelha para a sua transmissão inaugural.

E ponha solene nisso. Roquette e seus colegas reunidos na Escola Politécnica, ouviram emocionados quando, da Praia Vermelha, Edgar Sussekind de Mendonça abriu a transmissão recitando um soneto do próprio Roquette intitulado, bem a propósito, O Raio. Era simbólico: o raio viaja pelo espaço e vai cair sabe-se onde – como o rádio. (A única cópia do poema perdeu-se naquela noite e o autor nunca conseguiu reconstituí-la de memória). Em seguida, Heloísa Alberto Torres, filha do abolicionista Alberto Torres, leu um conto infantil de Monteiro Lobato, de que não há registo do título. E, concluindo, Francisco Venâncio Filho leu uma página de Os Sertões. Com aqueles poucos minutos de vozes no ar, a Rádio Sociedade silenciou e a estação da Praia Vermelha voltou aos seus serviços telegráficos. Mas, para todos os efeitos, uma rádio brasileira ferira pela primeira vez – como se dizia – o éter.

Vibrando com o resultado, M. B. Astrada, sócio-fundador da rádio e representante no Brasil da Casa Pekan, de Buenos Aires, especialista em equipamentos de radiofonia, doou à Rádio Sociedade uma pequena estação emissora e receptora de 10 watts – suficiente para que, com boa vontade, se fizesse ouvir no centro da cidade e arredores. Três meses depois, no dia 20 de agosto, o governo federal, já com Arthur Bernardes na presidência, autorizou oficialmente o início das irradiações no Brasil, desde que "para fins educativos". Bernardes não parou por aí: permitiu que a Rádio Sociedade fizesse uma hipoteca do material emissor no Banco do Brasil, no valor de 100 contos de réis, para instalar a antena e cobrir as despesas. Entre estas, estava a compra de uma estação de 1 quilowatt, fornecida pela Marconi, com a qual a rádio poderia ultrapassar até os limites do então Distrito Federal.

No dia 7 de setembro – um ano depois da Exposição do Centenário e funcionando no pavilhão doado pela Checoslováquia, em frente à Santa Casa de Misericórdia, na rua Santa Luzia -, a Rádio Sociedade do Rio de Janeiro, agora com o prefixo de PRA-A, entrou triunfalmente no ar.

Não era nada parecida com a rádio que logo se faria no Brasil. pelo contrário, com o seu programa de "educação em massa", a Rádio Sociedade parecia, a princípio, uma extensão da Academia de Ciências. Os académicos faziam tudo: produziam, escreviam e apresentavam os programas. Roquette dava o exemplo: acordava todos os dias às 5 da manhã, lia os matutinos, circulava com o seu lápis de duas cores tudo que lhe parecesse interessante e, duas horas depois, estava diante do microfone apresentando o "Jornal da Manhã". Lia as notícias, com destaque para o noticiário internacional, e comentava-as para os ouvintes. Outros levavam discos das suas colecções de clássicos e óperas, colocavam-nos a tocar e falavam dos compositores, músicos e cantores. Ninguém era pago, era tudo por amor. E havia os que se apresentavam nos programas, recitando poesia, cantando ou tocando piano – entre os quais o próprio Roquette.

Para que não se pense que a rádio era um instrumento da sua vaidade, é bom dizer que Roquette era razoavelmente eficiente ao piano e que a sua voz de barítono era elogiada pelos entendidos. Ele próprio era um homem rigoroso: quando, certa vez, o escritor Afrânio Peixoto insistiu em cantar na rádio, Roquette não fez por menos: "Mas, com essa voz, Afrânio ???". Peixoto caiu em si e contentou-se em recitar poemas de cordel, no que foi acompanhado no piano por Roquette.

Nem tudo era música e literatura. Os académicos também davam palestras e cursos pelo microfone, de acordo com as suas especialidades: português, biologia, história, francês, geografia e até silvicultura. O Rio, capital da República, recebia toda espécie de personalidades da área cultural e científica, e um programa obrigatório desses figuras era uma visita às instalações da Rádio Sociedade – um deles, em 1925, já na Rua da Carioca, 45, foi Albert Einstein.

O amadorismo da rádio era tão flagrante quanto a boa vontade dos que a faziam. A programação também não era de cunho exactamente popular, mas ninguém se importava: os aparelhos eram caros naqueles primeiros tempos, poucos podiam possuí-los e esses poucos gostavam do que a rádio punha no ar. O que os desagradava era o som terrível das transmissões. Os jornais viviam cheios de cartas protestando contra os ruídos e chiados da PRA-A e temendo pelo futuro do rádio no Brasil, caso aquilo não melhorasse. Roquette, com a sua larga visão histórica, não se assustava com a ameaça:

"Nós, que assistimos à aurora do rádio, sentimos o que deveriam ter sentido alguns dos que conseguiram possuir e ler os primeiros livros", disse ao microfone.
"O rádio é a escola dos que não têm escola. É o jornal de quem não sabe ler; é o mestre de quem não pode ir à escola; é o divertimento gratuito do pobre; é o animador de novas esperanças, o consolador dos enfermos e o guia dos sãos – desde que o realizem com espírito altruísta e elevado". E sempre concluía as suas falas com a frase que se tornaria o lema de sua rádio: "Pela cultura dos que vivem em nossa terra. Pelo progresso do Brasil".

O espírito "altruísta e elevado" a que Roquette se referia significava uma rádio sem fins comerciais – ou seja, sem anúncios. Muito bem, mas quem arcava com os custos das transmissões? Roquette institui um fundo de auxílio à rádio, mantido por associados (que chegaram a três mil em poucos anos) – daí o nome Sociedade. Esse fundo era enriquecido com doações "espontâneas" de casas comerciais.

Quando se viu com mais dinheiro em caixa, a rádio começou a criar um corpo de funcionários fixos e remunerados. Era o início da profissionalização. O primeiro locutor de verdade (speaker, como se dizia e se continuaria a dizer por muitos anos) parece ter sido Rubey Wanderley. Na sua esteira vieram outros locutores, programadores, roteiristas e discotecários, trabalhando por salário. Aos poucos, o dia-a-dia da rádio começou a sair das mãos da Academia de Ciências, embora isso não alterasse o seu espírito: Roquette cuidava de que ela continuasse educativa e se mantivesse à distância de qualquer contaminação política, comercial ou excessivamente popularesca. Mas era de se prever que a Rádio Sociedade não ficaria sozinha por muito tempo no "éter".

Em 1924, surgiria a Rádio Clube do Brasil, também nos mesmos moldes de uma "sociedade" (no caso, "clube") de contribuintes. Nos dez anos seguintes, e só no Rio, apareceriam as rádios Educadora, Mayrink Veiga, Philips, Transmissora, Guanabara, Ipanema, Farroupilha, Jornal do Brasil, Tupi e, em 1936, a Nacional. Em São Paulo e no resto do país, outras estações também apareceram. Em pouco tempo, a orientação geral do rádio brasileiro era outra. Afastara-se anos-luz da que fora um dia sonhada por Roquette-Pinto. E a própria Rádio Sociedade teria de se espremer suas doses maciças de alta cultura para programar um pouco de "entretenimento".

O ídolo Francisco Alves apresentava ao microfone da Rádio Sociedade um grande sucesso carnavalesco de Ismael Silva, Newton Bastos e dele próprio, o samba "Nem é bom falar". A certa altura da letra, Chico Alves cantou: "Tu falas muito, meu bem, e precisas deixar / Tu falas muito, meu bem, e precisas deixar / Senão eu acabo dando pra gritar na rua / Eu quero uma mulher bem nua!

No seu novo apartamento na Avenida Beira-Mar, Roquette-Pinto escutava a transmissão. Ao ouvir Francisco Alves cantar pelo microfone que "queria uma mulher bem nua" quase teve uma coisa. Ligou no acto para a emissora, chamou urgente um encarregado e mandou-o tirar a rádio do ar. Em seguida mandou chamar o próprio Francisco Alves e passou-lhe uma espinafração:
"Seu Chico, o senhor quer uma mulher bem nua. Eu também quero uma mulher bem nua. Só que o rádio não é lugar para querer isso!"

Mas não adiantava. O decreto-lei 21.111, de 1/3/1932, assinado pelo presidente Getúlio Vargas, autorizara a veiculação de propaganda comercial pelas rádios. Com isso, como numa avalanche, surgiram os patrocinadores, os cachês artísticos, os programas de auditório, os humorísticos, as transmissões desportivas, os anúncios e os jingles ao vivo. Os aparelhos ficaram mais baratos e o rádio tornara-se, finalmente, acessível a toda a gente. E, de uma hora para outra, tornara-se também o principal factor de divulgação da música popular. Os grandes cartazes (como eram chamados os cantores e compositores mais famosos) passaram a ser disputados pelas emissoras: Carmen Miranda, Sylvio Caldas, Mário Reis, Almirante, Ary Barroso, Lamartine Babo, Orlando Silva e, claro, Francisco Alves. Para ter esses nomes no seu cast, as rádios investiam em equipamento e novos programas, pagavam-lhe fortunas e lutavam como cães adultos pela preferência do público.

Roquette-Pinto não entrava nessa luta. Para ele, o rádio deveria continuar educativo – pelo menos a sua rádio. Até fizera algumas concessões, com a de acolher nos seus quadros o já famoso "Programa Casé", de Ademar Casé – um berço de talentos com Noel Rosa, Haroldo Barbosa, Paulo Roberto, Nássara, Evaldo Rui, Sadi Cabral. Tudo corria bem e ele gostava de música popular, mas, assim que se descuidou, Francisco Alves pediu mulheres nuas pelo microfone.

Nadando contra a corrente, Roquette continuava a não admitir propaganda comercial ou política na sua emissora – o que a condenava a um gueto no dial. Mantida, como sempre, apenas pelos "sócios", a Rádio Sociedade não tinha dinheiro para modernizar o equipamento e ampliar a potência a fim de enfrentar a concorrência. As óperas completas que transmitia (e que atraíram milhares de jovens brasileiros para o canto lírico) estavam a ser sufocadas em volume por "O Teu Cabelo Não Nega". Roquette desejava apenas que houvesse espaço para toda a gente. Mas, agora, o ideal do rádio educativo no Brasil estava em perigo.

Em 1933, convenceu seu amigo, o educador Anísio Teixeira, secretário da Educação, a fundar uma rádio-escola a ser mantida pela prefeitura do Rio, para servir de exemplo a outras no futuro. Anísio gostou, Roquette emprestou-lhe equipamento e funcionários da Rádio Sociedade e, com isso, a Rádio Escola Municipal, PRD-5, foi para o ar no ano seguinte. Em troca, Anísio pediu que ele fosse o seu primeiro director. Roquette aceitou. Talvez a nova estação do Largo da Carioca (rebaptizada em 1945 como Rádio Roquette-Pinto) pudesse escapar ao comercialismo que parecia engolir todas as outras, inclusive a sua.

Para evitar a morte ou a desfiguração da Rádio Sociedade, Roquette só via uma solução: reverter os seus canais a um órgão oficial – o Ministério da Educação e Saúde.

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