O alto romantismo e o som da música gravada

Separadores primários

High Romanticism and the Sound of Recorded Music
Read time: 20 mins

O Alto Romantismo e o som da Música gravada



Do original "High Romanticism and the Sound of Recorded Music"
Por Robert Everist Greene (TAS nº 111 - Set/Out 1997)

Tradução de Ricardo França
O texto original pode ser encontrado nesta ligação

A sub-valorizada Música orquestral


Tudo começou com Wagner. Claro que todos os revolucionários têm antecessores, tal como têm seguidores, e alguns dos elementos que constituem a Música do Alto Romantismo de finais do Século XIX podem ser encontrados, ainda que em fase embrionária, nas obras de Schubert, de Liszt e especialmente de Beethoven.

Mas foi Wagner o principal responsável pelo enorme passo que viria a dar origem a um novo universo musical, aquele que se tornaria pátria para Richard Strauss, Anton Bruckner, César Franck, Alexander Scriabin e tantos outros.

Quase todas as composições orquestrais do período compreendido entre 1860 e 1913 foram escritas ou sob influência directa de Wagner ou deliberadamente contra.

Claro que tudo isto faz parte do senso comum já que não existe um outro compositor sobre o qual tenham sido redigidas mais linhas.

Mas no meio de uma tão imensa quantidade de literatura acerca de Wagner, o filósofo da Música, o revolucionário da Harmonia, o reinventor da Ópera, o mestre da Poesia, o intérprete dramático da Mitologia, e até o político revolucionário, não é difícil descuidar o facto de que Wagner mudou o sentido literal do som da Música.

Experimente escutar na sua mente a abertura de "Eine Kleine Nachtmusic" de Mozart e em seguida a abertura de "Das Rheingold".

A peça de Mozart é leve, stacatto, dividida em curtas frases, dominada pelo agudo (a melodia é constituída pelas notas mais altas, e harmonizada de cima para baixo) e do ponto de vista filosófico é nítida e racional.

Aliás, esta Música exige clareza na execução: clareza no tocar, linhas instrumentais marcadamente separadas e uma acústica igualmente clara a servir de sustento ao som.

"Das Rheingold", por outro lado, é maciça e com linhas de tal forma longas que algumas seguem indefinidamente ("melodia infinita"), está construída de baixo para cima e mística. A performance requer uma sonoridade quente, contínua, cheia, com solidez no grave e uma acústica relativamente reverberante a servir de sustento ao som.

Ainda que estejamos a simplificar - Mozart contém passagens Wagnerianas (a abertura de "Don Giovani", por exemplo), Wagner algumas Mozartianas, R. Strauss muitas mais - a essência permanece verdadeira. A "Liebestodt" de "Tristan und Isolde", as densas estruturas musicais de Bruckner e os adagios de Mahler habitam um mundo sonoro distinto daquele que existia no período clássico - de Mozart e de Haydn - e também diferente do universo de Beethoven.

A 5ª Sinfonia de Beethoven tem um carácter filosófico pleno da paixão heróica que associamos ao Alto Romantismo, de uma intensidade extrema, com contrastes extremos, mas a sua sonoridade permanece baseada em estruturas rítmicas onde predomina o stacatto, muito mais do que por exemplo numa sinfonia de Bruckner.

Esta transferência na acentuação sonora tem vastas implicações na forma como a Música deve ser gravada e reproduzida. Essas implicações, e a forma como têm sido ignoradas ou mal interpretadas, serão o tema que irei abordar neste artigo.

As mudanças na Música de que falo estão, em grande medida, registadas nas partituras. As densas orquestrações, a abundância de instrumentos - até mesmo a invenção de um novo (a tuba de Wagner) - e as longas linhas melódicas impulsionadas por harmonias de grande complexidade cromática fazem parte literal da música na forma como esta ficou escrita.

Mas importa também sublinhar as mudanças na acústica dos espaços onde esta Música deveria ser tocada.



A seguir: A ascensão da sala ressonante



A ascensão da sala ressonante


Por razões óbvias, não nos é possível determinar como é que se tocava Música nos séculos anteriores ao evento da gravação.

Apesar disso, podemos perceber e escutar como soam as Salas de Concerto construídas nessa altura já que ainda sobrevivem e se encontram a uso uma quantidade razoável destas construções.

Ainda existe, por exemplo, a Sala (Palácio Esterhaza) onde se tocavam as Sinfonias de Haydn quando este se encontrava ao serviço dos Esterhazy.


Sala Esterhaza, tempo de reverberação: 1,2 segundos


Este espaço permite sentar 200 pessoas, e tem uma reverberação de 1,2 segundos.

A Esterhaza era uma pequena sala privada, mas a Leipzig Altes Gewandhaus, construída em 1781 para concertos públicos, sentava 400 pessoas e também tinha uma reverberação de 1,2 segundos (apesar de já não existir, foi possível calcular o tempo de reverberação recorrendo aos desenhos da construção).

Como esta última era famosa pela excelente acústica podemos deduzir que o tempo de 1,2 segundos era considerado ideal para o período Clássico.

Comparemos estes exemplos com o Grosser Musikvereinsaal de Viena (que felizmente ainda se encontra de pé).

Considerado, tanto no seu tempo como nos dias de hoje, como um espaço ideal para concertos do repertório sinfónico do século XIX, é uma sala com 1.680 lugares sentados que tem um tempo de reverberação de 2 segundos.

Esta mudança do tempo de reverberação de 1,2 para 2 segundos representa uma enorme alteração: o som das primeiras salas é seco, limpo, claro - quase suficientemente claro como o de um teatro -, a sala mais recente, por seu lado, é muito reverberante e tem uma sonoridade quente e cheia.

O tempo de reverberação dos graves é superior ao das médias frequências, e ainda maior do que o das altas frequências, enfatizando essa sonoridade quente e cheia que associamos à orquestra Romântica.

Com efeito, a sala funciona como se de um controlo de tonalidade se tratasse, acentuando os baixos e actuando como um filtro passa-baixo nas altas frequências.

Grosser Musikvereinsaal, Viena (tempo de reverberação: 2,2 segundos)


Musikvereinsaal, Viena, tempo de reverberação: 2,2 segundos


Dentro da sala ficamos com a ideia que a maior parte do que ouvimos é som directo e que o som ambiente ou reflectido tem um papel secundário; a ilusão é de tal modo forte que algumas pessoas acreditam que a acústica das salas de concerto é um assunto sem importância. Mas a sensação de que o som directo predomina deve-se ao facto de o nosso cérebro determinar a localização através dos sons que chegam primeiro, pelo que a localização aparente dos instrumentos tende a ser exacta e o som parece vir directamente da sua fonte.

Powell Hall, St. Louis (tempo de reverberação: 2,2 segundos)


Powell Hall, St. Louis, tempo de reverberação: 2,2 segundos


No entanto a realidade é totalmente diferente, já que numa sala reverberante de dimensões comuns (20.000 m3 de volume, 2 segundos de reverberação) o som directo totaliza menos de metade daquilo que ouvimos quando nos situamos a distâncias superiores a seis metros do palco.

Existe entre muitos audiófilos a profunda crença de que o "efeito de precedência" (localização determinada pelos primeiros sons) também se aplica ao equilíbrio tonal ou tímbrico, levando-os a acreditar que colunas de som com resposta de frequências em câmara anecóica linear podem ter uma resposta neutra nas suas salas de audição.

Esta ideia é um erro, especialmente ao nível das baixas frequências - digamos que abaixo dos 500Hz - em que o som reflectido nos chega aos ouvidos ainda antes de se ter completado um ou dois ciclos de som directo.

Nas salas de concerto o som reflectido demora mais a chegar, cerca de 15 milisegundos, permitindo assim que os transitórios se destaquem com clareza: um prato de ataque soa sempre como um prato de ataque. Mas no que se refere ao som prolongado a sala assume preponderância, e o som prolongado é nem mais nem menos do que a essência da Música Romântica.

Podemos, portanto, concluir que em qualquer local da audiência a acústica da sala contribui enormemente para o carácter tonal ou tímbrico daquilo que ouvimos (na sala de Wagner, a Bayreuth Festspielhaus, a audiência apenas ouve som indirecto já que a orquestra se encontra situada num poço que tem a particularidade de ser coberto), e que o som de grande proximidade, à distância a que são colocados os microfones, é muito diferente daquele onde se encontra a audiência (e daquele que deveria ser registado).

Quando ouvido a grande proximidade o som directo é muito mais intenso do que a reverberação da sala, ao contrário daquilo que se passa quando nos situamos na audiência, onde se ouve o som prolongado com maior intensidade nos graves e muito menos informação de altas frequências. O decaimento começa aos 4kHz, por vezes aos 2kHz, e aos 8kHz é já bastante elevado, aumentando com a subida da frequência: a partir dos 6 metros de distância de um instrumento a maior parte do som que se ouve é reflectido, com muito pouca intensidade de agudos e uma ligeira redução na presença.



A seguir: A importância Musical do timbre



A importância Musical do timbre


A ascensão do Alto Romantismo alemão está relacionada com um interesse inédito pelo som literal da Música. Até então sempre se admirara a beleza das vozes, sempre se apreciara o requintado som dos instrumentos, mas a mensagem musical do Alto Romantismo vai encontrar no próprio som, no colorido tonal e na beleza tímbrica, o veículo perfeito para a sua expressão: Richard Strauss referia-se sempre às suas composições comentando o modo como as partituras tinham sido orquestradas e quando pediram a César Franck uma impressão sobre a sua Sinfonia em Ré Menor este respondeu que "soava bem".

Esta nova forma de abordar a composição está em claro contraste com a das épocas que a antecederam. "Die Kunst der Fuge" (A Arte da Fuga) de J. S. Bach, por exemplo, não foi orquestrada para uma instrumentação específica, e soa de forma magnífica tanto em órgão como por um quarteto de saxofones ou de cordas. As obras do período Clássico também apresentam uma mutabilidade semelhante, ainda que menos universal. O adagio do Concerto para Violino nº 3 de W. A. Mozart soa de forma perfeitamente aceitável quando tocado no piano e acompanhado por um Basso Alberti. Mas se efectuarmos a mesma experiência com Concerto para Violino nº 1 de Max Bruch os resultados serão desastrosos (uma peça para violino tocada no piano). E nas obras puramente orquestrais do período Romântico a situação é ainda mais extrema.

Até certo ponto, é possível imaginar parte das sinfonias de Anton Bruckner tocadas no órgão, tendo em conta que a sonoridade deste instrumento se aproxima do som contínuo da orquestra, mas qualquer outra alternativa seria demasiado redutora.

Ironicamente, foi durante este período, mais concretamente na segunda metade do Século XIX, que as transcrições para piano atingiram o auge. As gravações ainda não existiam e as performances ao vivo eram complexas e dispendiosas, pelo que as transcrições para piano se apresentavam como a única forma de escutar música com frequência ou em ambiente doméstico. Como tal, era feito um imenso esforço para transcrever não só o conteúdo melódico e harmónico das obras orquestrais mas também, tanto quanto possível, a sua sonoridade.

A característica mais marcante do Alto Romantismo germânico é sem dúvida o som marcadamente contínuo (ou tonalidade sustida), onde os transitórios e a percussão têm um papel nitidamente secundário.

Claro que os transitórios são importantes na medida em que definem o timbre dos instrumentos, mas a sonoridade de Wagner e de muitos dos compositores Românticos que o seguiram (com a excepção de Mahler) baseia-se fundamentalmente num legato sustido, longo, fluido e expansivo.

Esta característica deve-se à existência de diversos factores que interligados deram forma à nova sonoridade.

Em primeiro lugar, o Alto Romantismo transpira gravidade, e gravidade sempre esteve associada ao som contínuo, tanto no período Clássico como em épocas anteriores. Na "Flauta Mágica" de Mozart a gravidade de Sarastro e do Orador do Templo é-nos transmitida pelo canto lento e legato das personagens, por oposição à alegria de Papageno com o seu canto rápido e stacatto. Outro traço sonoro que normalmente associamos à gravidade é a predominância das baixas frequências. E esta expressão de gravidade encontra eco na acústica ressonante, reverberante e acentuadora de baixas frequências das salas de concerto.

Em segundo lugar, a audição é consideravelmente mais sensível às variações tonais quando as notas são longas e sustidas, pelo que a beleza tonal acaba por ser uma característica natural do [i]legato[i/].



A seguir: A reprodução do timbre



A reprodução do timbre


O princípio da sensibilidade ao timbre das notas longas e sustidas pode facilmente ser explicado através da avaliação de colunas de som, dada a grande variedade de temperamentos tonais. Um transitório vigoroso - por exemplo um "toque de arco" numa tarola - não nos diz muito sobre a qualidade do timbre de umas colunas e um "toque de arco" só não soará como tal se as colunas sofrerem de uns agudos deficientes. É, portanto, muito mais fácil avaliar as características tonais recorrendo ao som sustido, como música para órgão de ritmo lento ou mesmo ruído rosa.

Podemos demonstrá-lo com facilidade recorrendo a um equalizador gráfico: um ligeiro ajuste na gama média, com por exemplo a largura de uma oitava, provocará um efeito quer seja com ruído rosa, órgão ou o legato de uma peça orquestral. Comparativamente, essa alteração não terá praticamente qualquer efeito audível se utilizarmos um som de percussão.

E aqui encontramos um dos maiores mitos do Áudio, que o comportamento na reprodução de transitórios é o melhor indicador da qualidade musical de um equipamento ou sistema. Não deixa de ser irónico que em termos matemáticos a reprodução perfeita de impulsos implique a reprodução perfeita de tudo o resto (num sistema com distorção zero, livre de não-linearidades). Mas em termos de escuta, a audição é mais sensível a erros em som contínuo e constante.

Estudos recentes apontam no sentido de que este fenómeno se verifica igualmente com a fase e não apenas com a resposta de frequências. Em termos visuais, gráficos e matemáticos as não-linearidades de fase apresentam efeitos dramáticos nas formas dos transitórios, mas estes efeitos têm pouca expressão audível.

Por outro lado, e de acordo com estudos recentes efectuados pelo Áudio Group da Essex University, esses erros são óbvios na audição de música legato de grande complexidade, como, por exemplo, música coral.



A seguir: Os problemas da reprodução



Os problemas da reprodução


A natureza que caracteriza o som orquestral do Alto Romantismo, contínuo e constante, e a importância musical de se conseguir a tonalidade correcta fazem com que este género musical seja extremamente difícil de reproduzir.

Nos primórdios do áudio, os grandes desafios para os engenheiros eram problemas simples como uma gama dinâmica larga ou a extensão da banda de frequências aos limites da audição. Mas actualmente, com amplificadores de grande potência e colunas com full range com bom desempenho ao nível da dinâmica, e o CD com uma gama dinâmica (quase) suficiente, estas dificuldades estão relativamente controladas.

A grande questão está na extrema dificuldade em conseguir um equilíbrio tonal adequado; em som constante de espectro alargado, erros mínimos (0,5dB) de banda larga são suficientes para provocar alterações bastante óbvias. E a realidade é que um par de colunas numa sala comum - ou mesmo umas excelentes colunas em sala bem tratada - terão dificuldade em conseguir uma variação de ±2dB numa gama compreendida entre os 60Hz e os 8kHz. Se observarmos medições "na sala" correctamente efectuadas veremos que a resposta de frequência está longe de ser linear, apresentando montes e vales relativamente pronunciados.

E esta é, do meu ponto de vista, a razão pela qual a maioria dos músicos não "acredita" no Áudio: na prática, a reprodução doméstica soará menos precisa quanto mais recente (e mais treinada) for a nossa memória auditiva.

Na minha experiência, quando damos a escutar aos músicos um sistema verdadeiramente preciso ou neutro (e gravações igualmente precisas) eles ficam fascinados e verdadeiramente impressionados. O problema é que a maioria dos sistemas de Áudio e a maioria das gravações não são suficientemente bons.

Outra característica interessante do som contínuo reside no facto de este se adequar perfeitamente à discriminação de problemas na resposta de transitórios. Não deixa de ser irónico que, apesar da eficácia com que os gráficos "waterfall", que tanto fascinam os audiófilos, representam (matematicamente) uma boa resposta de transitórios, o som contínuo seja tão afectado por problemas nesse aspecto particular. Ou seja, que de um ponto de vista técnico o comportamento dos transitórios seja mais óbvio através da escuta de música onde estes praticamente não existem!

As cristas ressonantes que podemos observar numa waterfall soam aos nossos ouvidos como colorações (ou distorções) e o caos provocado pelo armazenamento de energia de baixo nível em bandas de frequência relativamente largas provoca um som indistinto com falta de claridade.


Colunas Focal 1037be



Focal 1037be

Colunas Sonus Faber Amati




Sonus Faber Amati (bom exemplo)

É fácil conseguir-se umas colunas com vivacidade na resposta de transientes; basta que estas tenham uma resposta extensa nas altas frequências. Mas para que se consiga reproduzir com pureza o timbre das notas longas e sustidas é necessário obter uma pureza na resposta de transientes muito mais alargada. Experimentem ouvir ressonâncias na gama média de alta, por exemplo, num "toque de arco" numa tarola: é uma tarefa impossível, a menos que a ressonância seja enorme; se, por outro lado, escutarmos um menino soprano as ressonâncias destacar-se-ão de forma inequívoca.

Existe entre a imprensa da especialidade uma certa tendência (talvez involuntária) para encobrir este facto, já que as curvas de resposta "na sala" são uma representação muito mais realista daquilo que ouvimos do que aquelas medições muito bonitas, efectuadas em câmara anecóica, que os fabricantes e alguns techno-reviewers tanto gostam de exibir. Este facto é especialmente verdade para as frequências abaixo de 1kHz, a gama do espectro mais afectada pelas características da sala.

Trata-se de um facto do conhecimento da maioria mas que é raramente discutido com a profundidade que merece.

Outra característica de especial relevância é os reflexos produzidos pelo pavimento. Se o recurso a tapetes ou alcatifas permite atenuar os reflexos ao nível das altas frequências, isso já não é possível para a gama abaixo dos 500Hz, que por ser ignorada pela maioria dos fabricantes (com algumas excepções como p.ex. a Gradient) leva a que a maioria dos sistemas de Áudio sofra de graves irregularidades de banda-larga na resposta entre os 150 e os 500Hz. Essa gama de frequências mais afectada representa nada mais do que a essência da música orquestral, mais exactamente a oitava abaixo e a oitava acima do Dó natural.

Não é, portanto, de admirar que a sonoridade de música orquestral reproduzida pareça estranha àqueles que tenham uma memória fresca de como esta soa na realidade, mesmo que se trate da reprodução de uma boa gravação (entretanto, continuamos a deparar-nos com testes onde o reviewer tenta corrigir a resposta de umas colunas substituindo os cabos; não admira que os high-enders tenham fama de malucos).



A seguir: Começar com o pé errado: o estilo norte americano



Começar com o pé errado: o estilo norte americano


À primeira vista, a captação da natureza eminentemente tonal da música orquestral Romântica parece uma tarefa fácil, mesmo se o mesmo não se passa ao nível da reprodução: basta colocar um microfone de resposta linear num lugar da plateia razoavelmente bem posicionado. E é verdade. Ouvimos dizer com regularidade que "microfones não são ouvidos" mas, embora isso seja verdade no caso da percepção subtil de características espaciais, também é verdade que a reprodução precisa de uma gravação efectuada com um microfone Blumlein está próxima de conseguir recrear o temperamento tonal com exactidão.

Nesse caso como é que é tão difícil encontrar boas gravações? Porque razão é que a maioria das gravações (re)produzem o som das madeiras demasiado próximo, violinos a tocar excessivamente alto e com excesso de brilho (e normalmente empurrados para a extremidade do canal esquerdo), graves insuficientemente cheios e excesso de ruído (de manuseamento) vindo de todos os instrumentos?

Quando é que foi a última vez que ouviram ruídos de arcos e estalidos de teclas ou chaves num concerto?

As raízes do som não-concerto pseudo-alta-fidelidade remontam a um passado longínquo da história da música e do som Norte Americana. Apesar de terem abraçado a música do Romantismo Alemão com enorme entusiasmo, é possível argumentar que os Norte Americanos nunca compreenderam realmente a forma como esta deveria soar. A rejeição de Mahler, e mais tarde de Furtwangler em prol de Toscanini podem ser vistas como um símbolo da abordagem tecnológica Norte Americana à música, em profunda rotura com a verdade espiritual da tradição Romântica. E do hábito Americano de construir salas de concerto demasiado grandes resultou uma forma de tocar que acentua o volume de som absoluto, uma espécie de personificação musical do síndroma "o maior, o mais forte e o mais potente é melhor".

Do ponto de vista do som, a má interpretação dos valores do Romantismo por parte dos Norte Americanos de meados do Séc. XX pode ser explicada por dois desenvolvimentos relacionados: o aparecimento da sala de concertos "seca", que por dar ênfase ao som directo subverte o ideal Romântico, e a evolução das técnicas de gravação orientada para o registo de som directo.

O primeiro destes desenvolvimentos, nascido da mente do Engenheiro Acústico F. R. Watson, defendia que as salas de concerto produziam demasiado som reflectido e que o verdadeiro som era o som directo produzido pelos instrumentos. Apesar de idiota, esta ideia foi bem recebida pela mente Norte Americana em 1925 e assim continuou durante várias décadas.

Os adeptos da pseudo-ciência ficaram convencidos, o que levou à construção de um número surpreendente de salas de concerto que, apesar de se destinarem especificamente a albergar concertos de música Romântica, se caracterizavam pela total oposição aos ideais acústicos e sonoros do Romantismo, que era e continua a ser o principal repertório sinfónico dos E. U.

Foi também por essa altura que a Bell Telephone Laboratories desenvolveu uma ideia igualmente transviada sobre a forma como deveriam ser efectuadas as gravações. Em teoria, essa ideia faz sentido: o projecto consistia em gravar a música num auditório com microfones colocados próximo dos instrumentos e afastados entre si, e reproduzi-la através de altifalantes espaçados de forma idêntica e alimentados pelo registo do microfone correspondente. E funcionava bastante bem.

Mas esta ideia, quando aplicada à reprodução doméstica, torna-se completamente inviável.

Este método funciona para a reprodução em auditório porque a sala providencia a ambiência necessária. Mas no caso da sala-de-estar doméstica, cujas características a impedem de proporcionar a acústica adequada, o resultado não passa de uma imitação grotesca pois a música orquestral do período Romântico foi concebida tendo em conta a amplificação e o sustento resultantes da acústica da sala que modificavam a resposta tonal.

A ligação entre as duas ideias é óbvia: Watson convenceu os Norte Americanos que se deveria ouvir apenas o som directo e a Bell Telephone Laboratories informou-os da forma como estes deveriam escutá-lo em suas casas.

E se estes desenvolvimentos tiveram lugar numa época em que a gravação de alta fidelidade ainda não era possível, quando a gravação para fita e para LP - suportes cuja gama de frequências abrange a quase totalidade do espectro audível - apareceu as ideias estabelecidas eram completamente erradas.

Passaram-se décadas sem que os Engenheiros de Som se lembrassem de experimentar gravar a perspectiva da audiência e a "Alta-fidelidade" tornou-se sinónimo de "presença", "impacto", "brilho", "dinâmica" - características que na realidade são acessórias de somenos importância para a música orquestral.

Seria, portanto, de esperar que o advento do Áudio sério - "High-End" - invertesse esta tendência mas pelo menos nas primeiras duas décadas o "High-End" continuou obcecado com a "presença". E ainda hoje é prática comum recorrer-se a gravações de proximidade (close-miking) de vocalistas femininas para demonstração de um suposto "realismo" - acompanhadas, claro está, por bateria e instrumentos gravados igualmente perto.

Podemos concluir que o entusiasmo pelas gravações de proximidade dos anos 50 e 60 se mantém nos nossos dias.

Apesar disso, parece prevalecer algum bom senso: gravações como a de Korngold na Dorian [DOR 90216] ou o Fenby Conducts Delius da Unicorn [DKP 9008/9] apresentam uma sonoridade orquestral bastante verosímil (e consequentemente bela).

Com o desaparecimento da ideia (nascida há décadas atrás e que já então obsoleta) de que os problemas do Áudio se centram na necessidade de conseguir altas frequências em quantidade suficiente a esperança ganha um novo alento.



A seguir: O problema da escala<



O problema da escala


As orquestras são agrupamentos de grandes dimensões. Uma orquestra Romântica completa pode ocupar uma área de 10 por 20 metros. Quando vista de perto impressiona pela sua enorme extensão, mas esta impressão não pode ser reproduzida em ambiente doméstico.

Mesmo nos melhores sistemas o som nunca deixará de ser uma miniaturização da realidade se o ponto de vista for equivalente ao do maestro.

Na perspectiva da audiência a situação é totalmente diferente. Se nos sentarmos na décima segunda fila, por exemplo, a extensão da orquestra ficará contida num ângulo igual ou inferior a 90 graus, e a percepção literal da profundidade resume-se a uma vaga sensação de que os instrumentos se encontram a alguma distância.

O ponto de vista da audiência é fácil de reproduzir. De facto, a extensão angular parece suceder de forma automática (quando vista de perto, a extensão angular de uma orquestra é de quase 180 graus). Mas esta sensação espacial não é compatível com a qualidade tonal de uma captação de proximidade. A verdade é que um instrumento gravado a grande proximidade apenas soa natural se a sua escala aparente for próxima da realidade. Se um piano-de-cauda for gravado a grande proximidade, de forma a que se consigam ouvir os ruídos do mecanismo e a tonalidade brilhante e agressiva que os caracteriza a essa curta distancia, parece-me evidente que na reprodução deverá aparentar a escala equivalente aos seus 3 metros de comprimento.

Vejamos, por exemplo, a famosa gravação do 3º Concerto para Piano de Rachmaninov pelo pianista Byron Janis (Mercury SR 90283). Trata-se sem dúvida de uma magnífica interpretação, de uma experiência musical comovente. No entanto, a gravação tem uma sonoridade pouco natural: o piano soa intenso, brilhante e bastante grande, mas o grupo dos primeiros violinos está espremido no centro da coluna esquerda e a pouca extensão que se consegue para além das colunas está longe de representar os 15 ou 20 metros que, de acordo com esta perspectiva, a orquestra deveria na realidade ocupar.

Tendo em conta a relutância dos engenheiros em recuar os microfones, não deixa de ser irónico que a distância necessária para que os instrumentos tenham uma tonalidade natural seja também a solução para o problema da escala.

Na perspectiva da audiência, o piano-de-cauda pareceria pequeno e a orquestra grande (mas não muito grande no que se refere à extensão angular), com uma escala perfeitamente reproduzível e uma tonalidade bastante natural, assemelhando-se realmente a música.

Yehudi Menuhin descreveu o design da sala de concertos como um "problema resolvido" – tudo aquilo que necessitamos de fazer é copiar as velhas obras-primas. A gravação não é propriamente um "problema resolvido"; mas se optarmos por uma perspectiva adequada, do ponto de vista da audiência, isso levar-nos-á de volta ao bom caminho.

Algumas pessoas não o fazem por não lhes ser possível, outras optam por não o fazer: o fracasso de muitas gravações acontece não por incapacidade mas por uma falha de intenção ou de propósito.

Mais uma nota histórica relevante: os Engenheiros de algumas décadas atrás gostavam de gravar orquestras em espaços demasiado reverberantes, como salas de concerto que deveriam estar cheias de espectadores ou até igrejas, numa tentativa de evitar a sonoridade seca e fria que resultava da gravação a grande proximidade.

Este facto reforçava a ideia de que a gravação na perspectiva da audiência produziria uma sonoridade demasiado "etérea" (na realidade, os espaços é que não se adequavam).

Muitos audiófilos ficariam escandalizados com a distância, até nos nossos dias, a que os microfones são colocados, mesmo em gravações ditas "audiófilas".

Em suma: os Engenheiros procuram reproduzir a realidade de um concerto de música orquestral recorrendo a uma perspectiva artificial demasiado próxima complementada por uma acústica artificial demasiado reverberante.

No caso do pop e do jazz ligeiro dito "audiófilo", a "presença" é de tal modo exagerada que muita gente se vê forçada a adquirir sistemas com menos "presença" do que é desejável, sistemas e que gravações com uma sonoridade natural soam demasiado "descontraídas" e distantes.



A seguir: O que podemos esperar para o futuro




O que podemos esperar para o futuro


A reprodução do ideal sonoro da música do Alto Romantismo tem sido de certo modo um fracasso até há bem pouco tempo mas o sucesso parece, finalmente, uma possibilidade.

O aparecimento de colunas que possibilitam uma transdução clara e isenta de ressonâncias em todo o espectro e o advento do DSP (Digital Signal Processing) que permite detectar e corrigir problemas da sala potenciam a abertura de um novo capítulo na reprodução doméstica.

Paralelamente, começam a aparecer cada vez mais Engenheiros dispostos a romper com as ideias estabelecidas e a efectuar gravações realistas no verdadeiro sentido, oferecendo uma sonoridade próxima da de um concerto.

Claro que no que se refere à reprodução ainda existem algumas questões técnicas e estéticas. A mais notável das questões estéticas deve-se à universalidade da música comercial (rock e pop), com altas frequências ridiculamente exageradas, que não só habitua as pessoas a música de muito má qualidade como a uma sonoridade excessivamente brilhante, de tal forma que a música acústica não amplificada lhes soa fastidiosa.

Mas pelo menos existe a possibilidade de que o futuro venha a ser melhor do que o passado.

As novas gerações irão apreciar as qualidades presentes na tecnologia do Áudio contemporâneo e a capacidade deste em reproduzir a música com realismo, e deste modo comprovar o fracasso dos conceitos de Alta Fidelidade dos anos 50, que se caracterizavam por uma excessiva e obsoleta "presença". E então o áudio poderá evoluir; temos diante de nós a perspectiva de vir a reproduzir a música sinfónica em toda a sua glória.