Coruja

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Coruja é o que sou
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Coruja


Bem, é o que sou. Não a propriamente dita, mas em linguagem de radioamador. Pois coruja é o radioamador ouvinte, o que não tem transmissor e liga o receptor em casa, para ficar ouvindo as conversas dos outros.


Foto de um famoso radioamador, Paulo de Castro



(Clique na imagem para saber mais sobre Paulo de Castro, PY2PC, radioamador brasileiro)

Divertimento barato, aliás. Não precisa sequer ter-se um receptor de alta categoria: basta um pequeno transistor desses japoneses, de contrabando, acrescentado de uma antena de nove metros de fio de aço de pescador. O importante, além disso, é que o transistor tenha faixa de onda de 40 metros, que é por onde se manifestam os radioamadores da rede local. O mais é constância e paciência.

E penetra-se, num mundo de que não suspeita o simples cidadão acostumado a escutar apenas as emissões comerciais de TV e "broadcasting"; pululando a nosso redor, insuspeita, mas permanente o activa, funciona em volta do mundo todo, uma imensa rede de estações de rádio, manipuladas por radioamadores que estabelecem pela Terra inteira uma cadeia de comunicações, muito mais eficiente que os serviços públicos, oficiais ou particulares.

A boa vontade é o seu lema, a solidariedade humana a sua obrigação.

Quem viu aquele filme francês "Se todos os Homens do Mundo", pode fazer uma ideia do fenómeno . E não se trata de conversa de fita de cinema, não; é assim mesmo daquele jeito que eles se comportam, da Noruega ao Congo, de Ver-o-Pêso o Vigário Geral.

Um radioamador é assim uma espécie de cruza entre escoteiro e "santo" de sessão espírita; do escoteiro tem a mania de bem servir, de não deixar passar um dia sem realizar um acto de bondade, muitos actos de bondade. Do espírito tem a faculdade de baixar no terneiro da gente a uma simples evocação, e ainda por cima servir de "cavalo" para qualquer mensagem de importância grande ou pequena, que você queira transmitir ou receber.

Pois, para que a mensagem seja transmitida, não, precisa sequer que o interessado escute o apelo de quem chamou: há sempre um colega serviçal que escuta, toma nota e passa adiante, - feito atleta, com fogo simbólico.

Os radioamadores que se encontram diariamente a uma hora certa, em grupo, formam o que se chama na gíria deles uma "rodada" . Pode ser das cinco às sete da manhã, de uma às três da tarde, de dez à meia-noite, a rodada não deixa de funcionar nunca .

É só procurá-la na frequência habitual e lá estarão eles, com os companheiros do éter, a "assinar o ponto", a bater papo, a comentar as marcas as excelências e os defeitos técnicos das respectivas transmissões, - enchendo linguiça até que apareça o que eles consideram "serviço sério": recados de urgência, mensagens, comunicados de falecimento, de doença de nascimento, de viagens, de mudanças; promoção de encontros de famílias ou amigos separados; um de Pará de Minas outro de Barra do Corda, trocando comunicados afectuosos ou urgentes, que "Mamãe foi operada. e está passando bem", que "a festa ‘das bodas de ouro é terça-feira, sem falta, veja se vem mesmo!".

E o dono da estação de rádio é o médio. Num país onde os telégrafos tão-pouco funcionam o os correios ainda menos, calcule-se o valor dessa comunicação. O que uma troca de telegramas pediria, no mínimo, alguns dias e isso em lugar onde haja telégrafo - o radioamador resolve num quarto de hora.

Creio que a rodada mais famosa do Nordeste é o chamado o "Cafezinho da Manhã", que funciona diariamente das cinco e meia. as sete e engloba uma rede de radioamadores que vai ,da Bahia ao Maranhão, com incursões por Minas, Pará ou até onde for a onda de 40 metros.

Seu criador e animador é o "Caboclo Xavante" das tabas ao "Quixeramobim", que em geral: dirige a rodada, dá a palavra a. quem de direito, mantém a disciplina da reunião, faz, como eles dizem, "a roda rodar" .

É homem extremamente cortês, que pode estar apressadíssimo para "dar o pirolito", mas não dispensa os cumprimentos à Labre, à. escuta oficial, aos colegas de um em um, incluindo os" familiares", sem esquecer a "rede regional de corujas, da qual faço parte.

Mas, sendo assim disciplinador e comandante da rodada, responsável pelo seu tom permanente de cortesia e boa camaradagem , deixa de ser o seu tanto galhofeiro , e sempre pronto a zombar das conhecidas franqueza ou estrepolias de uns e outros da submissão dos "barrigas brancas ", das indiscrições de algum "cavalo de cão" e insinuar maliciosamente às esposas na "coruja" as possíveis peraltagem dos maridos em viagem ...

Nunca o vi em carne e ossos, mas é pessoa que trago no coração; conheço lhe a voz entre dezenas, é realmente espírito familiar e benéfico, desses que, nos terreiros, são chamados de "guias "...

O outro comandante do cafezinho o é mesmo mandante do seu direito, alta patente Militar e importante função oficial; mas para nós, é simplesmente "o Chaguinha ".

Esse conheço de longe, é um velho amigo dos tempos em que a gente pensava que podia consertar o mundo com discursos e boletins. um dos mais eficientes e prestativos da rodada . Perde horas do seu tempo precioso importante para um recado, tranqüilizar uma mãe aflita, conseguir um avião que traga um enfermo de algum lugarejo distante, obter a vacina. Dantes era mestre em broncas, especialmente contra os mal educados que invadem a frequência, abafando a voz dos colegas e atrapalhando as rodadas: agora, não sei o que lhe deu, está muito manso.

Os anos de cidade e as funções oficiais não lhe alteraram a fala típica de sertanejo e a sua sertaneja paixão por saber notícias de chuva. Ah, se soldado pode ser flor está, ali uma.

Outros membros do cafezinho são da mais variada procedência, padre e juiz dona-de-casa, general, moço rico, pequeno funcionário, comerciante, fazendeiro, até bispo! Tem de tudo ali, reunidos todos numa só fraternidade, tratando-se por você, ninguém querendo ser melhor do que os demais.

Com o truque mnemónico, usam uma espécie de pseudónimo tirado das iniciais dos seus prefixos: é o "velho fazendeiro" "caboclo serrano "(não falei que eles parecem gente de terreiro? Até essa mania de se chamarem ‘caboclos". , ) Um mais lírico, diz-se "Viva o nosso lar ". Outro se chama xadrez "xadrez lamparina". E tem o, Zé calado", e um meio maldizente a quem os colegas apelidam de "língua danada" . Usa além disso uma gíria particular em que expressões técnicas e jargão familiar se misturam. Tratam-se entre si por macanudos. um recado é torpedo do; automóvel é pé de borracha, mulher é cristal; dar sinal no meio da conversa dos outros é dar uma bicorada; falar ao microfone é modular, e ter estação forte que abafa todo o mundo é ser tubarão etc. etc.

Mas parece que, em conversa de radioamador, é proibido falar em negócios, em política e em dinheiro, regra a que eles obedecem com fidelidade. Excepção feita em casos e que aludir a dinheiro é indispensável - preço de material de rádio, de premente necessidade de alguém distante que lembra a mesada ao pai ou o numerário para uma emergência; eles , então, usam metáforas mais ou menos transparentes, como quilociclagem, "combustível", "manteiga".

E assim servem para alegrar o mundo, "fazendo a roda rodar" benza-os Deus.



*Rachel de Queiroz (1910 - 2003)

Escritora cearense, natural de Fortaleza, nascida em 1910. Foi uma das mais importantes romancistas do movimento do Nordeste.

Era radioamadora (PT7ARQ), mas não possuía equipamento de transmissão e ficava apenas na escuta, na coruja, como dizemos, ouvindo as transmissões em AM na faixa radioamadorística de 40 metros.



(Transcrito de O CRUZEIRO. 21/6/1962.)

Leia, também de Rachel de Queiroz, Rádio transistor