EMISSÕES REGULARES, PROGRAMAÇÃO E GOSTOS MUSICAIS
Num livro sobre a realidade radiofónica francesa, Méadel (1994) partiu de dois conceitos: regularidade e continuidade. Pelo primeiro, entende a indissociabilidade entre programa distribuído aos jornais e grelha de programas. A primeira das regularidades foi a hora da difusão. Ao longo dos anos ocorreriam duas evoluções: a duração mais curta dos programas das estações privadas face às públicas e a importância do domingo e da noite na programação.
Ao domingo, havia mais concertos, e, à noite, debates e palestras. Uma estação com menos recursos económicos e de pessoal utilizava mais os discos do que os concertos, pois estes implicavam grupos de músicos a actuarem ao vivo; os programas falados e as conferências eram reservados para o domingo.
Como se escreveu no princípio deste artigo, a bibliografia existente sobre emissões regulares de radiodifusão em Portugal (Souto, 1966-1967; RDP, 1986; Maia, 1995; Barros, 199?) aponta o seu começo para Outubro de 1925. Mas a nossa investigação regista a realização de concertos radiodifundidos em Abril de 1925, com a estação P1AC. Por seu lado, Maia (1995: 47) reporta, ao começo da primeira guerra mundial, algumas emissões de rádio, com a Rádio Hertz, de Fernando de Medeiros. Não consideramos isto como incoerência, mas ausência conceptual capaz de uma análise correcta.
Se se entender regularidade no sentido dado por Méadel, Outubro de 1925 ainda não é uma boa data para comemorar 75 anos de emissões regulares de rádio em Portugal. (Nota da "Minharadio_": Este artigo refere-se às comemorações dos 75 anos de rádio em Portugal no ano 2000) É certo que, a partir dessa altura, os jornais imprimiram, com alguma assiduidade, a programação das estações (concertos). Porém, regularidade implica continuidade. Houve períodos sem emissões, pelo que se pode falar apenas em emissões experimentais. CT1AA, por exemplo, fechava o seu emissor nas férias grandes, entre Agosto e Outubro. Os ouvintes que gostassem de concertos teriam, então, de sintonizar as estações estrangeiras. Sempre que surgia uma avaria no emissor de Abílio Nunes dos Santos Júnior, ficava-se à espera de peças sobressalentes, com a imprensa a informar os ouvintes da suspensão de programas. Parece-nos, pois, mais justo esperar pelos dois anos seguintes ou mesmo pelo final da década, para o aparecimento de emissões regulares de rádio no nosso país.
Nos anos iniciais da rádio, a preocupação foi a transmissão e não o conteúdo (Williams, 1999: 55). A noção de programação é uma inovação dos anos 30, compondo-se de sequências de discos, peças radiofónicas, notícias, palestras sobre agricultura, saúde e outras áreas, programas humorísticos e infantis e declamações de poesia. Algumas pequenas estações, como a Rádio-Graça, foram inovadoras no respeitante a géneros radiofónicos e na promoção de vozes e artistas locais. A diversificação de géneros marcaria cada uma das estações já em 1930-1931, acentuada com a entrada da Emissora Nacional.
As estações possuíam orquestras próprias ou ligadas a salas de espectáculos. Como não havia publicidade para pagar os programas, as orquestras davam concertos gratuitos por diletantismo, constituídas por amadores puros, ou procurando o reconhecimento público de uma carreira profissional. A música conciliava-se com outras artes, como o teatro radiofónico (surgido em Fevereiro de 1930 na Rádio Lusitânia, CT1DE), ou com ideais religiosos, como no tempo pascal, em Abril de 1930 (Rádio Hertziana, CT1BO).
Vimos já que a estação P1AC emitia concertos com o seu quarteto privativo. CT1BO era outra estação de Lisboa com um grupo artístico privativo (quinteto).(1)
De entre as personalidades que passaram diante do microfone daquela estação contaram-se Viana da Mota, Virgínia Vitorino e Vasco Santana, entre outros. A par da música tocada pelo quinteto da estação, que emitia em onda curta e, depois, em onda média, divulgava-se música de disco, nomeadamente da etiqueta Odeon. Beethoven, Massenet, Gounod, Bach e árias de óperas como Cavaleria Rusticana e Madame Butterfly faziam parte do repertório musical da estação.
Tal estrutura musical foi posta em causa pelos novos postos emissores. Quando CT1AA desapareceu em 1934, era já uma emissora ”velha”, pois o núcleo central dos seus programas mantinha a estrutura do concerto de música clássica. Nesse ano, o concerto de música clássica do Rádio Clube Português ocupava apenas uma noite por semana, enquanto as outras noites eram dedicadas a música portuguesa e a música a pedido dos auditores. A programação de CT1DH era mais popular (canções, tangos, polcas, valsas, pasos dobles, música portuguesa e de dança). A Sonora Rádio, mostrando uma grande diversidade, dispunha da seguinte grelha de programas:
sinal horário da Sé do Porto; abertura da estação; retransmissões do Monumental Restaurante (orquestra Torta), do hall do Jardim Passos Manuel (orquestra René Bohet e 15 professores), do Grande Hotel do Porto (orquestra de Júlio Pimenta) e do cinema Olímpia (orquestra Fernando Carriedo). Nos intervalos, havia música variada. Outros elementos da grelha de programas da estação portuense eram: emissão para crianças, com histórias, música alegre e ligeira; palestra médica; música clássica, música de dança, notícias, música portuguesa; boletim meteorológico do Observatório da Serra do Pilar.
Um dos programas populares das pequenas estações eram os discos pedidos e destinados a familiares e amigos (dedicados), como ainda hoje se observa nas rádios locais. Contra isto, insurgia-se, entre outras, provavelmente, a Rádio Clube Lusitânia (Porto). A cultura popular reflectia-se nestes programas de discos dedicados - numa altura de escassa propriedade de discos por parte dos ouvintes, esta era uma forma de eles ouvirem as músicas das suas preferências ou na moda. Por outro lado, a emissão de alguns eventos (concertos, discursos, desafios de futebol) era acompanhada pela retransmissão por altifalante na via pública. Em 1929, por exemplo, houve desafios de futebol relatados via telefone por um altifalante colocado numa praça. Nesse mesmo ano e em 1930, decorreram emissões radiofónicas de discursos sobre a campanha do Trigo, transmitidos por altifalantes nas vilas e aldeias onde se efectuavam as sessões de esclarecimento.
A rádio transformou o gosto musical íntimo e privado que os media anteriores, como o piano e a grafonola, haviam moldado (Flichy, 1991; Douglas, 1987, 1999; Santos, 2000). Nestes, o auditório resumia-se ao público culto e íntimo do salão onde decorria a audição; a rádio massificou gostos e alcançou locais inimagináveis. Se fez desaparecer o lado convivial directo, deu origem à mitologia das personalidades - artistas, locutores, entertainers, com troca de cartas e a sua leitura ao microfone.
Quando a Emissora Nacional começou a trabalhar em ondas curtas, em finais de 1936, a avalanche de cartas vindas das ilhas, das colónias e das comunidades portuguesas radicadas no Brasil e nos Estados Unidos confirmou o interesse por essas emissões. As cartas transportavam gostos estéticos e políticos específicos, e sonhos dos colonizadores há muito distanciados da pátria, com indicação de preferências da música tradicional, trechos de música clássica mais populares e, até, vozes dos locutores (Emissora Nacional, 1937). O mesmo acontecera antes, ao escutar a qualidade de uma emissora amadora:
“Estava a tentar receber ondas curtas com o meu receptor. Captei uma onda de suporte fortíssima.
Depois de esperar alguns minutos, ouvi aparecer o canto do rouxinol. Pensei tratar-se de Roma, emitindo em novo comprimento de onda.
Calcule V. a minha surpresa quando ouvi anunciar: esta é a Estação Rádio CT1AA de Lisboa, Portugal.”
O canto de rouxinol era o indicativo sonoro da emissão de CT1AA (Berg, 1999: 115).
Referências:
(1) ”A estação CT1BO de Lisboa” (1930). Rádío-Ciência, n.2 12, Abril, p299
Este artigo é uma cortesia de Rogério Santos para "A MINHARADIO"