Ribatejo na rota da guerra fria

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RARET - RADIO AMERICAN RETRANSMISSION



Outra foto do centro emissor da RARET



Ribatejo na rota da Guerra Fria

O maior posto emissor da Rádio Europa Livre funcionou durante quase 50 anos em Glória do Ribatejo, a 70 quilómetros de Lisboa.

O complexo transmitia incessantemente programas de ideologia capitalista para os países dominados pelo comunismo.

Quem se dirige ao local onde, durante décadas, se ergueu um majestoso complexo de antenas de rádio, depara–se com uma aldeia fantasma que não assusta porque é visível que ali viveu muita gente feliz.


Antenas de emissão da RARET


Actualmente, nos cerca de 196 hectares, resistem para contar a história: diversas infra– estruturas que serviam de suporte ao centro radiofónico, já desmantelado. É difícil imaginar que nesta pequena aldeia do Ribatejo se desenvolveu parte da história da Guerra Fria.

Sob domínio da agência de segurança americana CIA, mas longe dos olhares indiscretos dos espiões soviéticos, foi criada em 1951 a Raret - Sociedade Anónima de Rádio–Retransmissão, uma arma imponente ao serviço dos norte–americanos numa das mais importantes batalhas do conflito, a guerra da informação.

O local foi escolhido por ser próximo da capital e discreto, já que este era um projecto semi–secreto. A Rádio Europa Livre (REL), tinha sede em Lisboa, de onde partiram as primeiras gravações para a Glória, envolvidas em algum sigilo.


Outra foto das antenas de emissão da RARET


Durante toda a sua existência, a REL manteve actualizada uma audioteca com o espólio da organização. Segundo o engenheiro electrotécnico da antiga Raret, Manuel Cardoso, 51 anos, “os Estados Unidos injectavam propaganda política nos países de Leste” através deste colosso radiofónico, “um dos maiores do Mundo”.

Os conteúdos programáticos eram persuasivos, de forma a seduzir os ouvintes dos países–alvo para as “vantagens” do mundo ocidental. Notícias censuradas, ou a leitura de obras proibidas pelos regimes comunistas faziam parte da grelha da REL, gravadas com a voz de exilados políticos.

A Raret estava ligada a um importante centro receptor, a Maxoqueira (em Benavente), que acolhia as emissões provenientes de Munique, onde se encontrava o edifício principal da Rádio Europa Livre.


Foto do centro emissor da RARET


Os programas eram assim enviados da Alemanha para Portugal, sendo imediatamente retransmitidos para os países do bloco comunista.

No início, as antenas estavam direccionadas para a Roménia, Checoslováquia, Polónia, Hungria e Bulgária. Mas, a partir dos anos 60, os programas passaram a ser emitidos em 18 línguas distintas para todos os países sob a influência da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), incluindo os do Médio Oriente.

O ex–técnico de serralharia da Raret, Armando Oliveira, 73 anos, trabalhou desde o primeiro dia na sociedade. O funcionário, que tinha livre–trânsito no complexo, assume que “no local eram recebidas informações "cozidas" de acordo com os interesses do governo dos Estados Unidos”, e acrescenta que havia espiões norte–americanos nos países de Leste “que informavam os representantes da Glória se a emissão estava a ser ouvida correctamente.”

O antigo coordenador–chefe do serviço de antenas, Alfredo Silva, 72 anos, recorda que, numa cerimónia presenciada pelos funcionários, um dos administradores dizia no seu discurso que o financiamento do projecto era garantido por “um dólar dado por cada cidadão americano, principalmente os mais pobres, para esta causa.”

Na década de 50, a CIA não admitia ligações ao projecto. Porém, nos anos 60, a agência secreta americana assumiu o envolvimento, ainda que com algumas reservas.

Paralelamente à construção das primeiras antenas em Portugal, o congresso americano criava uma fundação responsável pela angariação de fundos para a manutenção da Radio Free Europe (RFE).

A “Cruzada para a Liberdade” tinha como símbolo um sino, que percorreu 21 cidades americanas, onde os cidadãos eram encorajados a escrever mensagens e a contribuir com dinheiro. Os lucros não foram significativos, mas no final da campanha, o sino seguiu viagem para a Europa Ocidental.


A América em Portugal

Com as antenas, chegaram também os símbolos do capitalismo. A prosperidade trazida pelos americanos elevou o nível e as condições de vida dos habitantes locais. A ruralidade e o analfabetismo da zona foram substituídos pela formação profissional. Armando Oliveira, que trabalhou 42 anos na sociedade, explica que nos anos 60 “os trabalhadores já dispunham de uma escola primária, uma escola industrial, centro de saúde (24 horas por dia), maternidade, uma área residencial”, e, a nível lúdico, “usufruíam de um bar e uma piscina privada”.

Os salários dos funcionários da Raret eram muito acima da média nacional da época. Alguns trabalhadores chegavam a receber vencimentos superiores em 200 por cento, quando comparados com o rendimento de um trabalhador agrícola. As regalias sociais também faziam parte dos privilégios de quem prestava serviço no complexo.

A administração financiava o passe dos transportes públicos aos funcionários e familiares mais próximos, e distribuía suplementos monetários de forma regular.

O espaço era administrado a partir de um edifício central em forma de “T”, constituído por diversos escritórios, oficinas de electromecânica e electrotecnia, e pelo edifício que albergava a Guarda Nacional Republicana, responsável pela segurança do complexo.

Com uma dimensão de oito mil metros quadrados e diversas estruturas paralelas a estas, actualmente, os edifícios continuam intactos, ainda que desprezados.

“Uma vila dentro da vila”, explica Alfredo Silva, que considera que a Raret foi benéfica para a região. “Mas não sei se foi benéfica para o mundo.”


O Cravo e a Coca–Cola

No período conturbado que se seguiu ao 25 de Abril de 1974, o pequeno “oásis democrático” que se vivia há já muito tempo no complexo administrado por americanos sofreu alguns percalços. Símbolo do capitalismo em Portugal, a Raret era um alvo privilegiado dos ataques de um país que sorria abertamente ao comunismo, após várias décadas de regime ditatorial.

Nos dias que se seguiram à “Revolução dos Cravos”, a importância política do centro retransmissor ditou o envio imediato de tropas para o recinto pelo Movimento das Forças Armadas, que controlava o país, de forma a proteger a integridade do posto da REL.

A pesar disso, nos anos seguintes, a sociedade sofreu duas tentativas de atentado através de engenhos explosivos colocados nas imediações dos emissores. Três petardos amarrados a uma antena foram o primeiro sinal de aviso. Ainda que um deles tenha explodido, a antena aguentou o impacto.


Outra foto das antenas de emissão da RARET


Já na década de 80, foi detectada uma bomba junto a uma das entradas do complexo. Na altura, o acto foi atribuído às FP-25 de Abril, mas tal nunca chegou a ser, verdadeiramente, confirmado.

Os incidentes registados e o clima revolucionário apenas contribuíram para o reforço da segurança, mas o normal funcionamento do maior posto emissor da Rádio Europa Livre nunca foi colocado em causa.


O declínio da Raret

Com a queda do muro de Berlim, iniciou-se a decadência e o desmantelamento progressivo da estação. Manuel Cardoso recorda que, “quando os regimes comunistas se começaram a democratizar, a Rádio Europa Livre deixou de fazer sentido”. Os equipamentos foram enviados para novos postos transmissores da REL, sedeados na Grécia e no Pacífico.

O destino deste palco histórico da Guerra Fria é a futura construção de um condomínio privado e um campo de golfe.

Uma década depois, apenas restam partes da mega estrutura. A Rádio Europa Livre ainda existe, mas as infra–estruturas que a difundem estão noutros países, já que as antenas norte–americanas estão agora viradas para os interesses no Médio Oriente.


Relações políticas

A Raret iniciou a sua actividade a 4 de Junho de 1951. A instalação, em terras portuguesas, de um complexo administrado pela CIA durante o regime de Salazar ajudou a fortalecer as relações entre os dois países, e contribuiu para a afirmação de Portugal na Organização do Tratado do Atlântico Norte (NATO).

Depois de uma neutralidade dúbia durante a II Grande Guerra, era necessário reforçar a política externa e a imagem de um país “ao serviço da Verdade e da Liberdade”, como se podia ler num monumento mandado construir por Salazar no recinto.

O acordo de colaboração era formalizado através de documentos com prazos definidos, posteriormente revalidados.

Os protocolos legitimavam a presença da Raret em solo português, e eram quase sempre assinados ao mesmo tempo que os acordos que prolongavam a permanência da base militar norte–americana das Lajes, nos Açores.

Fechando as portas, oficialmente, em 1996, só em 1999 a Raret viria de facto a encerrar, com a saída dos últimos trabalhadores.

Em Portugal, pouca foi a documentação deixada para trás aquando do desmantelamento do complexo.


Do outro lado

Do outro lado da “Cortina de Ferro” desenvolveu–se uma rádio com funções homólogas às da REL. A pesar de existir desde 1922, a Rádio Moscovo foi aproveitada para passar conteúdos adaptados aos interesses soviéticos, emitindo para as nações da Europa Ocidental programas que eram traduzidos para as línguas dos países receptores. Em Portugal, a mensagem da ideologia de esquerda chegava em espanhol, mas todos os dias havia pelo menos uma hora em português.

Os trabalhadores recordam o antagonismo de trabalhar na Raret e em casa ouvirem, às escondidas, as emissões da clandestina Rádio Moscovo.

Esta não foi a única iniciativa russa para fazer frente à REL. 200 emissores, estacionados em pontos estratégicos, difundiam de forma contínua ruído, na tentativa de impedir ou dificultar a comunicação da Rádio Europa Livre.

Hoje, a Rádio Moscovo continua no ar, sob o nome Voz da Rússia, mantendo na grelha uma hora em português, que pode ser acompanhada on–line, em .



Texto: Rui Antunes e Sofia Piçarra
Fotos: Roberto Caneira