100 anos de rádio em Portugal - As rádios piratas Versão textual
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Nota: Esta conversão foi feita utilizando inteligência artificial e, como tal, pode conter alguns erros.
Bem-vindos.
Hoje vamos revisitar uma época de antenas em varandas, estúdios montados sabe-se lá onde, às vezes em roupeiros, e uma vontade enorme de comunicar, de chegar ao éter.
Vamos explorar a história fascinante das rádios piratas em Portugal.
Temos connosco várias fontes, relatos, entrevistas, análises, até pormenores técnicos daqueles mesmo improvisados.
Ok, então a nossa missão aqui, qual é?
É tentar perceber como é que estas rádios apareceram, não é?
Primeiro ainda na ditadura, a desafiar o sistema, e depois a florescer já em democracia.
Que impacto é que tiveram?
E o que é que resta desse espírito meio rebelde, meio criativo?
É uma história, acho eu, de muita criatividade, de necessidade, e, claro, de uma enorme carulice.
Exatamente, e é muito importante situar isto.
Não foi só montar um emissor e pôr música no ar, foi mesmo um reflexo de mudanças sociais, políticas, culturais, muito profundas em Portugal.
Desde os últimos anos da ditadura até à consolidação da democracia nos anos 80.
As fontes que temos, felizmente, permitem-nos pintar um quadro bastante rico dessa época.
Pois a maioria das pessoas se calhar associa logo às piratas ou pós 25 de abril, ou aos anos 80, certo?
Mas as nossas fontes falam de uma história ainda mais antiga.
Há um caso pioneiro, quase esquecido.
Sim, há um caso muito interessante, isolado, é verdade, mas notável.
A Rádio Paradis foi criada por um jovem, José Guilherme Paradis, em Pernes, Santarém, e atenção, isto foi entre 1959 e 1960, em plena ditadura.
Sério?
1959?
Mas como é que isso era possível, com a PIDE, com o controle todo que havia?
Olha, era uma coisa muito, muito amadora.
Movida pela curiosidade, pelo inconformismo desse jovem, o Paradis, não parece ter tido objetivos políticos claros.
Era mais entretenimento.
Segundo o próprio, e os relatos confirmam, era uma rádio feita por prazer.
Era mesmo focado a entreter, sem confrontar diretamente o regime.
E tecnicamente, imagino que fosse tudo muito básico.
Completamente rudimentar.
As descrições falam, por exemplo, que para fazerem os relatos de futebol, estendiam um cabo, um fio, desde o campo de futebol até o emissor.
Ligavam o microfone e pronto.
Os programas que tinham mais sucesso, curiosamente, eram os de discos pedidos.
Algo que depois se tornou uma imagem de marca de muitas rádios locais, não é?
É verdade, os discos pedidos, mas imagino que não tenha durado muito tempo essa aventura.
Durou quase um ano, o que, pensando bem, para a época é surpreendente.
Acabou em meados de 1960, sim, quando a PIDE, a Polícia Política Interveio, aprendeu o material e encerrou a emissora.
Foi um caso mesmo único.
E só quase 20 anos depois, lá para 1977, é que aparece a Rádio Juventude, que é a próxima pirata de que temos conhecimento.
Uau.
Quase 20 anos de silêncio.
Então, depois dessa pausa longa, chegamos ao final dos anos 70, e sobretudo aos anos 80.
Aí, sim, a coisa explode, não é?
Aí explode.
A Rádio Juventude, que surgiu em Odivelas em 77, ainda era muito tímida.
Emitia só umas horas ao fim de semana.
Mas logo a seguir surge a Rádio Imprevisto, e essa já adota a tática do toca-e-foge.
Ou seja, emitir durante pouco tempo e depois mudar rapidamente de local para escapar à fiscalização.
Toca-e-foge.
Adoro o nome.
Isso devia dar origem a situações mesmo caricatas, não?
Ah, sem dúvida.
Há relatos de emissões feitas a partir de um carro.
Uma espécie de estúdio móvel improvisado.
Isto depois de lhes terem apreendido o material em casa, onde o estúdio funcionava, imagina, num armário embutido.
Diz bem da precariedade, mas também daquela determinação, não é?
Incrível.
Num armário.
E esta onda chegou ao Norte.
No Porto, por exemplo, houve réplicas.
Sim, sim.
No Porto, temos o caso da Rádio Caos.
Foi fundada em 81, começou a emitir em 82, e posicionou-se logo como uma alternativa.
Música diferente, informação local.
E eles também andavam sempre a mudar de sítio.
Há descrições de estúdios em sótãos, forrados com caixas de ovos, para a acústica, imagina.
Tinham até um slogan muito desafiador.
Você está a sintonizar aquilo que não devia.
E é curioso.
As fontes indicam que eles não gostavam do rótulo de pirata.
Viam-se mais como futuras rádios locais.
Interessante essa perspectiva.
Mas o que é que explica esta explosão nos anos 80?
Porquê surgiram tantas de repente?
Foi uma conjugação de vários fatores.
Uma tempestade perfeita, como dizem as análises.
Tínhamos, por um lado, as crises políticas e económicas do pós-revolução.
Por outro lado, a entrada na CEE estava ali ao virar da esquina, começava a haver acesso a novos financiamentos, mesmo que indiretos, e o panorama dos mídias estava a mudar, a sair do controle do Estado para a liberalização.
E, tecnicamente, o equipamento para emitir tornou-se um bocadinho mais acessível.
E as pessoas?
O fator humano?
Crucial.
Estava a surgir uma nova geração de profissionais.
Alguns vinham das rádios das ex-colónias, de Angola, por exemplo, e traziam, segundo os relatos, uma visão mais ampla, mais abrangente.
Contrastava muito com a rádio daqui de Portugal Continental, que era vista como muito redutora, muito restritiva, ainda marcada pela censura, pelo centralismo de Lisboa.
Outros formavam-se ali mesmo, na prática, nas piratas, e, ao mesmo tempo, começavam a aparecer os primeiros cursos de jornalismo.
Portanto, havia gente nova com vontade de fazer diferente.
Havia uma necessidade.
Quer dizer, as pessoas queriam mesmo ouvir outra coisa.
Sentia-se essa falta.
Claramente, havia uma certa saturação da rádio oficial.
Era vista como muito formal, muito distante, muito centrada em Lisboa.
As piratas vieram preencher esse vazio.
Deram voz às comunidades locais, aos jovens, a músicas que não passavam nas outras rádios, a assuntos que eram ignorados.
Como diz uma das análises, foram um sinal de amadurecimento da jovem democracia portuguesa.
E é interessante que já havia sementes disto antes, nos anos 60, 70, com projetos como a Rádio Universidade, que, apesar de tudo, formou gente que estava descontente com o modelo que existia.
Certo.
Então, elas surgiram para preencher essa lacuna.
Mas o que é que as distinguia mesmo no ar?
O que é que agarrava aos ouvintes?
Vários aspectos.
Mas talvez o principal fosse a proximidade.
Elas focavam-se na vida local, nos eventos da terra, no desporto dos clubes mais pequenos, sabes?
Nas notícias que, para os mídias nacionais, não eram importantes.
Lembra-me de ler qualquer coisa sobre prémios um bocado estranhos, não?
Sim.
Há essa história da Rádio Piranha, em Santarém, que dava prémios como cabeças de porco ou mãos de vaca.
O fundador contou isso.
Enquanto outras davam roupa ou discos.
Isto mostra bem essa ligação ao popular, ao dia-a-dia das pessoas.
E a música, claro.
Muita música popular.
Artistas da região.
E os famosos programas de discos pedidos eram um fenómeno.
E a participação dos ouvintes.
Isso era chave, não era?
Fundamental.
Era o mesmo como descreve uma das fontes o Megafone da Terra.
Abriram as linhas de telefone como nunca se tinha feito antes.
As pessoas ligavam para dar opinião, para ler poemas, para reclamar de problemas na rua ou só para conversar.
Isso criou laços muito fortes nas comunidades.
Ok, aqui é que fica mesmo interessante.
E do ponto de vista do jornalismo, era só improviso e boa vontade ou houve mesmo inovação a sério?
Olha, houve contributos importantes, sim.
Embora, claro, a qualidade fosse muito desigual.
Havia centenas de rádios, não é?
Mas as fontes académicas identificam algumas mudanças que as rádios, sobretudo as mais ambiciosas, trouxeram.
Podemos agrupar em algumas áreas.
Primeiro, trouxeram de volta o imediatismo.
A rádio a acontecer ali, em tempo real.
Depois, quebraram as hierarquias da informação.
De repente, um tema de cultura ou sociedade podia abrir um noticiário, não tinha que ser sempre política.
E algumas rádios, como a TSF, que nasceu neste meio, ou a Rádio Nova, no Porto, conseguiram combinar essa proximidade local com uma ambição maior, nacional até internacional.
Portanto, uma mudança nos temas e no alcance.
E na forma como o soava, no som da rádio.
Sim, aí também notou-se uma maior valorização do som, usar som ambiente, fazer uma edição mais dinâmica, menos dependente da simples leitura de textos.
Incentivaram o regresso da reportagem à rua, ir ouvir as pessoas.
A linguagem também mudou, tornou-se mais informal, mais coloquial, mais próxima da forma como as pessoas falam.
E diversificaram as fontes, deram voz ao cidadão comum, não só às fontes oficiais.
Mas essa abertura toda, fontes não oficiais, isso também trouxe problemas, imagino.
Nem tudo seria rigoroso ou verificado.
Sem dúvida, isso é o outro lado da moeda.
E as críticas existiam, e muitas vezes com razão.
Apontava-se a má qualidade informativa, o amadorismo, ler notícias de jornais diretamente para o microfone, sem qualquer trabalho, a falta de verificação.
Era um universo muito misturado.
Havia projetos muito bons e outros, bem, bastante maus.
Como diz um dos entrevistados, havia de tudo, até porcaria total.
Mas também a identidade sonora mudou.
Os jingles ficaram mais dinâmicos, o ritmo mais rápido.
Lembras-te do slogan da TSF?
Vamos ao fim da rua, vamos ao fim do mundo.
Isso marcou uma era.
E com tanta gente a começar ali, elas funcionaram quase como escolas improvisadas.
Claramente.
Para muitos jornalistas, animadores, técnicos, foi ali que aprenderam a fazer rádio.
Foi a escola deles.
Aprenderam fazendo.
Numa altura em que o ensino formal de jornalismo ainda estava pronto a dar os primeiros passos em Portugal.
Algumas rádios mais organizadas, como a TSF, por exemplo, chegaram a fazer formação interna para criar uma redação com o seu espírito.
Muitos nomes que hoje conhecemos na rádio portuguesa começaram assim, nas piratas.
Mas esta fase de liberdade quase total, meio anártica, tinha que acabar, não é?
A pressão para regularizar foi aumentando.
Foi, sim.
Ao longo dos anos 80, houve vários encontros, contactos entre os radialistas e o poder político.
Os encontros da branch foram importantes.
E, finalmente, no verão de 1988, saiu a lei da rádio.
E essa lei acabou com as piratas.
Bem, abriu a porta para a legalização.
Criou os concursos para as licenças locais, mas impôs uma condição que foi muito polémica na altura.
Todas as rádios que quisessem concorrer tinham que parar de emitir.
E o prazo era meia-noite de 24 de dezembro de 1988.
Na noite de Natal?
Que timing!
Como é que as rádios reagiram a isso?
Houve protestas?
Muitos protestos.
Os relatos falam que a 17 de novembro de 88, talvez umas 250 rádios fizeram uma emissão conjunta.
Foi um protesto contra o silenciamento obrigatório, coordenado a partir da TSS, em Lisboa.
E há testemunhos muito emotivos sobre as últimas emissões na noite da consoada.
Com lágrimas, com promessas de voltar.
Ficou famosa a frase da Rádio Mais, parece que é a última voz no ar.
Disse algo como, vamos deixar o 88, que era a frequência, mas vamos regressar de certeza em 89.
E regressaram.
Como é que correu esse processo de dar as licenças?
Muitas regressaram, sim.
Ganharam licenças nos concursos de 88 e 89 e tornaram-se rádios locais legais.
Mas as análises que temos dizem que o processo teve falhas.
O plano inicial previa 402 frequências, mas esse número parece ter sido fundido mais por critérios técnicos, de ocoar o espectro radioelétrico, e talvez por vontade política de arrumar o assunto, do que por uma análise séria se havia marcado para tantas rádios.
Quer dizer que deram licenças a mais?
Para o mercado que existia, basicamente sim.
Foram licenciadas 314 rádios, no total.
Mas de forma muito desigual.
Havia uma concentração enorme de candidaturas e de concorrência no litoral.
E depois, grandes zonas do interior ficaram sem nada.
Há distritos do interior onde dois terços dos conselhos ficaram sem qualquer rádio local.
Muitos projetos nasceram já condenados.
Sem sustentabilidade económica.
O mercado publicitário não conseguia alimentar tantas estações.
Como diz um entrevistado, acabaram por se matar umas às outras.
E o espírito?
Aquele espírito inicial, mais livre, mais comunitário?
Sobreviveu a isto tudo?
À legalização?
À necessidade de fazer dinheiro?
Luta pelas audiências, para conseguir publicidade.
E depois a entrada dos grandes grupos de comunicação social.
Renascença, Media Capital, Controla Invest.
Isso trouxe mais profissionalismo, é verdade, mas também levou a uma maior concentração da propriedade.
E a uma certa homogenização.
Muitas rádios locais passaram a funcionar em cadeia, a retransmitir programas feitos em Lisboa ou no Porto.
O número de jornalistas no setor local, depois daquele boom inicial, diminuiu bastante.
Mas, olhando para hoje, algum desse legado original ainda se mantém?
Ainda existe?
Existe, sem dúvida.
As rádios locais continuam a ter um papel social importante em muitas comunidades.
São um elo de ligação, dão voz a realidades que não chegam aos mídias nacionais.
Um exemplo que as fontes mencionam é o da Rádio Santiago, em Guimarães.
Tem uma ligação muito forte à comunidade local e também aos imigrantes, que a ouvem pela internet.
A experiência das piratas, contudo de bom e de mau, moldou a rádio que temos hoje em Portugal.
Claro que hoje o desafio é outro.
É a internet, é a digitalização.
Ouvinte passou a ser um utilizador que escolhe o que quer ouvir online.
A concorrência é global.
Os modelos de negócio só com publicidade local são muito frágeis.
Algumas análises até sugerem que, se calhar, modelos de rádio comunitária, talvez com sistemas de sócios, de membros, poderiam ser uma forma de recuperar parte daquele espírito de envolvimento e encontrar novas formas de serem sustentáveis.
Foi, de facto, uma viagem incrível.
Desde aquela faísca da Rádio Paradisos em plena ditadura, passando pela explosão caótica, mas tão vibrante, dos anos 80, até esta realidade mais complexa das rádios locais de hoje.
Uma história de paixão, de improviso, de inovação e de uma energia que mudou mesmo a rádio em Portugal.
É uma história que nos mostra bem como a tecnologia, mesmo que seja rudimentar, quando se junta com a necessidade de expressão e com um contexto de mudança social e política, pode criar fenómenos inesperados e com um impacto que dura.
Deixar uma marca muito profunda com os seus méritos e deméritos na forma como se pensa, como se faz e como se ouve rádio no nosso país.
Fica a pergunta no ar, não fica?
Com a facilidade com que, hoje, qualquer um pode criar um canal online, um podcast, fazer uma transmissão na internet, será que aquele espírito mais descentralizado, mais participativo, se calhar até um bocadinho rebelde e alternativo das rádios piratas, poderá encontrar uma nova forma de vida na era digital?