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Será já amanhã.
Iminência, o faizão.
Como arcebispo d'Hóstia e cardeal de Alvião, cumpre-me receber o embaixador de França.
Dir-lhe-ei...
Iminência, a humanidade avança.
Não é justo cerrar seu pensamento humano como uma porta de ouro o velho Vaticano.
Dir-lhe-á, o que poderá dizer vossa iminência?
França é enciclopédia.
França é enciclopédia.
E Roma é intransigência.
Iminência…
Velho reino.
Roma.
Roma que viu pela primeira vez Benedito XIV, um papa, a receber conselhos de Inglaterra e cartas de Voltaire.
As cartas de Voltaire, ou não?
Natural, fala como francês.
Fala como cardeal.
Mas, perdão, não será política de mais para uma ceia alegre?
Enfim, três cardeais não salvam Roma.
Hoje é a minha consciência.
Bastava um só para salvar.
Vossa iminência.
Deixemos isso a Deus.
E na divina mão Roma repousará.
Vamos nós ao faisão.
Se permitem, eu sirvo.
É um faisão doirado, mal político, sim.
Mas todo embalsamado de trufas.
Nunca fez encíclica nenhuma.
Não usou solideu por sobre a aura e a pluma.
Nem discutiu calavino em pleno consistório.
Mas é superior, por certo, a São Gregório.
A iminência, não acha?
A perna.
A asa.
O peito.
Muito superior, sobretudo, em direito canónico.
Uma asinha, a iminência.
Talvez a possa amaciar regando-a de xerêx.
A ave é rígida demais para velhinhos doentes.
A iminência ainda tem uns quatro ou cinco dentes.
Benedito, talvez não é muito mal saber ao cozinheiro o chapéu de cardeal.
Ainda agora a iminência agastou-se comigo.
Confesso.
Eu?
Agastou.
Voltaire é um inimigo.
E nós, amigos?
São discordâncias fulgazes.
Iminência.
Depois?
Veio hoje columpace.
Sobre um beijo, outro beijo.
Sobre um ano, outro ano.
Como envelhece a gente.
O velho Vaticano.
A política.
O mal que se faz e desfaz no mistério subtil destes panos diarrados.
A intriga na sombra.
Os passos sempre incertos.
O que nos vale.
Ah, sim, são os nossos concertos.
Música de um unção espiritual tão grande como a alma sob a Deus nas fugas da lalã.
Depois o seu violino, iminência.
E o seu violoncelo.
Estou a perder de vista.
Só com três cardeais, Roma era um céu aberto.
Tão longe a mocidade.
E o túmulo tão perto.
Caiu-nos sobre a fronte a neve dos caminhos.
Envelhecemos tanto, estamos tão velhinhos.
Já fez sol para nós.
Sol.
Pois não é verdade.
Sol.
Mais champanhe.
Sol.
Ainda aquece a saudade.
O pensar que se amou, que se viveu.
O amor.
Um tronco envelhecido a cuidar que deu flor.
Nestreou-vos o monte a neste mundo adita.
Toda rosas abrindo ao galgar na subida.
E a belhice ao descer, toda cheia de espinhos.
Ai, tão velhinhos.
Tão velhinhos.
Tão velhinhos.
Relíquias.
Devo ter setenta e três já foi.
Eu tenho oitenta e um.
São dois velhos perfeitos.
Três.
Três velhos sem cor que a saudade arrebenta.
Vossa eminência tem quantos?
Tenho sessenta.
Sessenta?
Só?
Sessenta.
E a vida já me cansa.
Vossa eminência está ainda uma criança.
Também já fui assim.
E que rijo que eu era.
Sessenta anos.
Ainda em plena primavera.
Tal qual assim.
Tal qual.
E eu?
O que direi eu?
Então ainda eu compunho ao espelho o solideu.
E via com amor sob a seda vermelha uns fios doi-lhe a rir por entreprata velha.
Mas eminências não.
Com sessenta anos feitos não sou precisamente uma criança de peitos.
Sou um velho também.
Um velhinho com o ar de quem viveu feliz e envelhece a cantar.
É, é uma criança.
Entendo a nossa idade.
Verá que ao acordar coisas da mocidade é o prazer maior que podem ter os velhos.
Para nós, recordar é cair de joelhos.
Eu sei.
Eu também sei.
Recordar é viver.
Transformar num sorriso que nos fez sofrer.
Ressurgir dentro da alma uma idade passada como um capela de ouro há cem anos fechada onde não vai ninguém.
Mas onde há festa ainda?
Se eu não hei de saber como a saudade é linda.
Se eu não hei de saber.
É curioso, eminências.
Não fizemos ainda as nossas confidências.
E somos como irmão.
Tão amigo, é certo, confidência.
Então, a morte vem tão perto.
Olhemos para trás, lembremos-nos da vida.
A saudade de um velho é uma estrada florida.
Confidências de amor.
Porque não há de ser.
Em toda a mocidade há um riso de mulher.
Contemos esse riso-vos aos outros.
Nós os três.
Recordar um amor é amar outra vez.
Ninguém nos ouve.
Mas, eminência.
O maior amor da nossa vida.
Oh, o maior amor.
Mas nós somos cardeais.
O sentimento humano em toda a parte vive.
Até no Vaticano.
E esta púrpura, ai não, seria crueldade.
Pode matar o amor, mas não mata a saudade.
Príncipe, o mais velho, eminência.
Não, não, por Deus.
Seja o mais novo.
Serei eu, então, que lhes hei de contar.
Uma aventura linda, cheia de coração.
Ai, não terei ainda mocidade na voz para saber contar.
Eminências, perdão se eu acabo de chorar.
Se uma lágrima.
Enfim, são tudo impertinências de velhos.
Eminências.
Eu começo, eminências.
Aos vinte anos, ou vinte e dois, proximamente, fui eu, por gentileza, a um fidalgo parente.
Com a minha capa negra e a minha volta branca, ter cánones e leis na tota salamanca.
Era, então, um pequeno espadachim ousado.
O frente ao vento, o manto ao ombro, a espada ao lado.
Tendo o instinto da frase e a intuição do gesto.
Um belasco no trajo, um quixote no resto, que seria, por suprema façanha, capaz de desafiar o próprio rei de Espanha.
Nem podo calcular sequer vossa eminência.
Como o meu busto roio irradiava insolência.
Não me apendoelo só pelas alturas, só para não deixar salamancadas escuras.
A respeito de amor como essência divina, fiquei-me no Dom Juan da Tirso de Molina.
O amor, para mim, por mais alto que fosse, morria-me de enflor com a primeira posse.
Detestava a mulher depois de conquistada.
A conquista era tudo, o resto quase nada.
Não podia sofrer aventuras serenas.
Para mim, o amor era o doeu apenas.
Batia-me ao acaso, enfim, por qualquer coisa.
Um beijo, uma mulher, uma pedra preciosa, uma flor que se atira, asa douro pelo ar, a gemola de um sorriso, a graça de um olhar.
Já não tinha valor para mim nenhum bem se não fosse preciso ir disputá-lo a alguém.
Lutar, vencer, rasgar ardendo de desejo com a ponta da espada ao caminho de um beijo.
Tomar de assalto o amor ao sol de mil perigos como um rubro-estandarte entre maus dinamitos.
Assim vivia eu e os outros estudantes, lendo pouco Platão, lendo muito Cervantes.
Quando entrou de jornada em Salamanca um dia sobre carros de bois, a maior companhia de cómicos que houve ainda em toda a Espanha.
Você disse a de Moliero.
Não era tamanha nem tão rica, por sério.
Foi uma loucura na universidade.
A primeira figura do bando era uma viva e linda rapariga, um rubens precioso, uma belezante, de um loiro flamengo, a cabecita aerosa toda num garavim de seda cor-de-rosa como um beijo de luz.
Mas se me diga inocência, eu peço perdão se me excedo iminências, mas aquela mulher era um anjo dos céus.
Se a Deus a pretendesse, ou desafiava a Deus, ver um anjo a dizer-me, ó natureza cega, versos de Calderón e de Lope de Vega.
A representação foi sobre um pátio velho todo armado a fidalgo em damasco vermelho, num tapete real de capas de estudantes.
Ai, o que eu sou agora!
Ai, o que eu era de antes!
Quanta luz!
Quanto fogo avelhiço no roupa!
Representaram, não sei bem se a minha boba, um poemazinho, levam-me da graça de boaça, mas sem ela, sem ela onde estaria a graça?
Nisto, em meio talvez de representação, ouvi ao pé de mim dentro de um bando folião do escolar dizerem voz rouca e sumida, o rabo será logo, hein, será a saída na porta dos brasões.
Quando a linda bobinha entrar na sua rica e leve o cadeirinha, cairemos sobre ela e não ouvi mais nada.
Ainda desempenho em meu palmo de espada, mas com motivo, não, logo é melhor, disse eu.
Quando acabou a peça era noite.
Deixou-me a tapeçaria.
A cadeirinha fora à porta dos brasões para sua senhora era um ninho infantil de luz e de brocado.
Perto do bando escolar aguardava embossado.
Ocultei-me também nas sombras da viela.
Desembanhei a espada e nisto assumo-a.
Disse espada e anel na mão em que estiver, mas sempre a porta-mão quando é linda a mulher.
Atirei-me de um salto e em rápidos instantes, sozinho contra vinte e tantos estudantes, contra uma faculdade inteira, espombarida.
A capa ao vento, a espada em punho, a pluma erguida.
Palhei, ensanguentei, fari numa violência.
Assim, assim.
Por Deus, é sévere as iminências.
E se não os matei a todos em verdade, foi para não se fechar a universidade.
Sozinho contra vinte, uma luta sangrenta.
Vinte, trinta, ou talvez contando bem, quarenta.
E então a cadeirinha?
Oh, desapareceu.
E a cómica?
Sei lá.
Que?
Não a seguiu?
Eu.
Não a tornou a ver?
Não, nunca mais a vi.
Foi por isso que a amei, porque a não possuí.
No seu caso, iminência, eu...
Diga.
Se o consente.
Seguia a cadeirinha?
Imediatamente.
E eu atingi-la então, curvaria o joelho, tiraria o chapéu em grande estilo velho, e prostrando-me junto à portinha doirada, de corpo ajoelhado e de alma ajoelhada, diria, num olhar cheio de sonhos loucos, Senhora, perdoai bater-me com tão pouco.
Linda frase.
Não é?
Pena não me ocorresse.
Agora, é tarde já para eu lhe a dizer.
Em espírito.
Enfim, o amor, pensando bem, não é só a bravura, é o espírito também.
Essa força sutil, tenuíssima quase, que a alma dozeste e a nobreza da frase.
Qualquer coisa de fino e reflexuoso e ardente, que nos faz ajoelhar irrefletidamente, perturba, vence, infiltra, e, mal a falar à boca, veste de seda e ouro a confissão mais louca.
Que seria o amor sem espírito e iminência?
Uma paixão brutal, ou uma impertinência sem pureza, sem tudo aquilo que resume o coração num beijo e a alma num perfume.
Com os punhos de renda, até a ausência é linda.
Pode ser fina a espada, a frase é mais ainda.
Uma escola sutil, desgrima delicada, procura o coração a frase, como a espada, e desfaz-se o ferir em pedras preciosas, como os raios do sol, quando ferem as rosas.
Se o homem vence a espada, e se a bela vencer, o espírito faz mais, porque vence a mulher.
No meu tempo, no tempo em que amei e vivi, fui, o que ainda hoje são as de Montmorency, o grande espirituoso leão da nobreza, cabeleira em anéis igual às nuvezas, passeando todo em sede orgulhoso e solene pelas salas feudais da duquesa de Maine.
Ah, como já vai longe esse tempo de amor, como vai longe.
Um dia, o velho Firidor, tocava sobre o clavo um lindo minueto, um mimo, o que há de mais século XVII, lara, lari, lari...
Já não me lembro bem.
Tudo fácil.
Lara, lala...
Que existante alguém, uma linda mulher que eu já tinha encontrado nas ruas de Versailles, em seu culturalidade, embaixatriz da Ágosteria.
Uma deusa.
O assombro.
Poisou num resto lindo a mão sobre o meu ombro e disse numa voz desdenhosa, marquês, detesto.
Sorrido.
Diz-te segunda vez.
Aborreço.
Ria e rida.
Ah, eminências.
Uma mulher bonita a visir insolências é a coisa mais galante e mais deliciosa que se pode imaginar-se.
É como se uma rosa soltasse em percações vermelha e melindrada contra as asas de sol de uma abelha doirada.
Diz-te terceira vez.
Marquês, tenho-lhe honrado.
Já não ri.
Junta o cravo velho, feridora, tocava o seu minueto ingénuo e palaceando.
Lari, lara, lari...
Não.
Lari.
Ah, já tanto há.
Não me lembro.
Abelhito.
Ah, talvez, sim.
Talvez o consiga tirar neste cravo holandês.
Então decidi, eminências.
Compus a cadeira.
Perverências do pé atrás.
A mão na espada, a moda antiga.
Corveio, manteça linda e fidelguém-me.
Diz-lhe a sua mão.
Venha, minha senhora.
Não me detestará daqui a meia hora.
Dançámos o minueto.
Ela era singular.
Dava-me a impressão de uma renda a dançar.
Uma renda ligeira, um saxo transparente onde se iam poisar perturbadeiramente como um enxame de olhos espirituosos e leve desde a breve ironia ao epigrama breve.
A frase amarivor, ardente e complicada.
O eterno quase tudo.
Apenas quase nada ao espírito me dura.
O sorriso e a eloquência.
Eu não sei precisamente o que disse, eminência.
Mas devia ter sido um repito de graça.
Galanteio que voa, o perfume que passa.
Fui amado em rosa, apaixonado e brando como já a ilusão do que seguis sonhando.
Eloquência e amor que perturba a mulher e vence quando a esvelha e veja quando velha.
Terminou o minueto, por fim.
Meia hora depois.
Nas sombras do jardim.
Embaixadriz d'Áustria.
Apaixonada, louca.
Unindo a minha boca à pequenina boca dizia-me a sorriso.
Como adoro-me a ti.
O espírito vencer ainda mais uma vez.
E enquanto filidor juntou o cravo.
Lari, lará.
Não sei.
Laralá, laralá.
Ah, o minueto.
Achei, achei, achei.
Vossa iminência perdoa-me talvez mais uma impertinência.
Era lindo, minueto.
É que para vencer nesse jogo floral uma simples mulher parece-me demais a sua meia hora.
Ah, pois acho, iminência.
O espírito demora.
Trinta e tantos brigões fortes e reverudos vencia-o a poder de espada em dois minutos.
Seguisse a minha boba, a iminência viria.
Passava a meia hora e não a venceria.
A iminência que viria.
Em que pensa, cardeal?
Em como é diferente o amor em Portugal.
Nem a frase sobre ti, nem o duelo sangrento é o amor coração, é o amor sentimento.
Uma lágrima, um beijo, uns sinos a tocar, um barzinho que ajoelhe e que se vai casar.
Tão simples tudo.
Amor cada rosas se inflora, em sendo triste canta, em sendo alegre chora.
O amor simplicidade, o amor delicadeza.
Ai, como se sabe amar a gente portuguesa.
Ser de sol um beijo, e desde tem reidade ir nesse beijo unindo amor e amizade numa ternura casta e numa estimação, sem saber distinguir entre a noiva e a irmã, fazer vibrar o amor em cordas misteriosas, como se em comunhão se entendessem as rosas, como se a todo amor fosse um amor somente.
Ai, como é diferente.
Ai, como é diferente.
Também vossa iminência amo?
Também.
Também.
Pode-se lá viver sem ter amado alguém, sem sentir dentro da alma, ah, poder-la sentir uma saudade em flores, a chorar e a rir.
Se amém.
Se amém.
Eu tinha uns quinze anos, Atenas, ela treze, um amor de crianças pequenas como uma nuvem de ouro ao aderir da manhã.
Era minha priminha, era quase uma irmã.
Bonita não seria?
Ah, não.
Talvez não fosse.
Mas que profundo olhar e que expressão tão doce.
Chamava-lhe eu, Arris, a minha mulherzinha.
Nós brincavamos tanto.
Eu sentia-a tão minha.
Toda a gente dizia em pleno povoado não há noiva melhor para o Sr.
Morgado nem em capela antiga a santa mais santinha.
E eu rosava baixinho, a minha, a minha, a minha.
Quanta vez, quanta vez, cansados de brincar, ficávamos a olhar um para o outro, a olhar todos cheios de sol.
O Ferrandes ainda.
Era feia, talvez, mas Deus achou-a linda.
E uma noite, a minha alma, a minha luz, morreu.
Deus se me quis tirar para que foi que me deu.
Para quê?
Para quê?
Oh, Iminente.
Ah, pois não via Deus que eu tinha coração.
Iminente.
Não via, ai, não via, não via.
Coisou que de um amor outro amor rafloria e matou-me.
E matou-me.
Iminente.
Afinal, foi esse anjo ao morrer que me fez cardeal.
E eu hoje sirvo a Deus, ao Deus que a me levou.
Foi Ele de nós três o único que amou.